quarta-feira, 30 de maio de 2012

Inferno


As chamas cercavam-me e tudo à minha volta ardia em tons de escarlate, as flores encarquilhavam como papel numa fogueira… O cheiro ferrugento do vapor e o sabor metálico no ar, que sempre foram uma constante, desapareceram e deram lugar ao aroma das flores que morriam.
Em breve juntar-me-ei a elas.
“Fizeste bem em manter-te vivo. Acabar com a tua miserável vida vai ser um prazer. Morre.”
BANG!
*
Acordei para mais uma típica manhã londrina. Abri a janela do meu quarto e contemplei a cidade para lá da muralha. Ouviam-se as buzinas dos dirigíveis, os guinchos abafados de máquinas e pessoas a serem forçados a trabalhar até à exaustão em sintonia com os arfos, as lágrimas, as tosses e os desesperos de todos os que se viam obrigados a competir com os avanços tecnológicos. O progresso montava um cavalo que corria com patas movidas por vapor e pistões alimentados por um coração mecânico que funcionavam como um relógio eterno; as pessoas corriam com pés descalços em calçadas angulosas, obrigadas a respirar um ar que mais depressa as mataria do que qualquer outra coisa.
Dentro desta redoma, temos direito à luz do sol, a dias chuvosos e a dias ventosos. Luxos como estes raramente alcançam o outro lado da muralha. Por muito que force o meu olhar, ao longe só vejo o topo dos prédios mais altos a romper pela metálica cortina de fumo. “Um sacrifício necessário em prol da humanidade!” Dizem as vozes exaltadas que vivem deste lado. “Uma tortura infindável.” Diz quem nunca é ouvido.
“Esta cidade está doente.”
Servi-me duma caneca de leite morno e duas fatias de pão barradas com manteiga. Levo tudo numa bandeja para o meu escritório onde já me espera a edição de hoje do jornal “O Império”. Ardina foi a mais recente profissão a ser adida à lista das coisas ultrapassadas. As joviais vozes que gritavam notícias nas esquinas deram lugar a uma complexa teia de aranha. Cabos metálicos que se cruzam e entrecruzam e por onde seguem pombos de ferro. Pequenas criaturas que recebem cartões perfurados que por sua vez ativam um motor a vapor e levam-nas pela teia.
A sua carapaça exterior é meramente decorativa, fruto da ideia do conde Teles, um imigrante que por mérito próprio conseguiu chegar ao topo desta sociedade hostil. O Conde Teles apelou à vaidade inerente à nobreza e, ao mostrar-lhes como tinha enfeitado o seu pombo de ferro, propulsionou-os numa corrida louca à procura de quem fosse capaz de fazer melhor. Choveram pedidos atrás de pedidos na cidade além da muralha e foi assim que os ardinas puderam acompanhar o progresso e não perder o seu ganha-pão. “Não te esqueças disto, Daniel. A melhor maneira de fazeres um nobre ajudar quem precisa, é fazendo-o crer que apenas o está a fazer para seu proveito.”.
Desprendi o jornal do meu pombo de ferro, o mesmo que fora feito pela mão do conde, carreguei-lhe o pequeno motor e enfiei-lhe o cartão perfurado ao contrário. A engenhoca estremeceu ligeiramente até partir com um piar a vapor.
Este exemplar do jornal vinha pejado de artigos onde sobejava a indignação com o aumento do número de pobres e pedintes “às nossas portas”, o ultraje que era a “ousadia de ser pobre rivalizar com a grandeza de espírito da nobreza” e outros ainda anunciavam que “medidas drásticas!” têm de ser tomadas antes da chegada, já no próximo dia dezoito de Agosto, daqui a menos de uma semana, da rainha Victoria e do seu séquito. Uma visita cordial que serviria também para reabastecer o palácio voador onde os escolhidos entre os escolhidos vivem. Um dirigível do tamanho de uma ilha que governa todo o Reino Unido lá bem dos céus que só desce à terra para abastecer e em ocasiões de extrema importância, a sua passagem por uma cidade capital era tratada com a mais solene das ocorrências.
“Uma real dor de cabeça.”, Chamava-lhe o Conde Teles, quando vinha de visita, depois dum longo dia na Câmara dos Nobres, para uns goles de algo que reavivasse o espírito e para longas horas de conversa animada; da última vez estive não menos de três horas a defender, em tons animados e exagerados, os contos de Dickens, dos quais sou fã, dos ataques e comparações, nenhuma delas favorável, com as obras de Victor Hugo, o eleito do Conde. A discussão só acabou quando ficámos sem voz. Eu consegui obrigar o Conde a levar consigo um exemplar de “Um conto de duas cidades”, mas com a condição de que o “Os Miseráveis” não sairia da minha mesa-de-cabeceira até o ter lido todo.
Atirei esta visão de papel e unilateral do mundo para a lareira apagada. Se as notícias continuarem assim por muito mais tempo, irei ter uma quantidade invejável de combustível para o Inverno. De momento, há assuntos mais importantes com que me ocupar. A minha secretária Christine, a criaturinha mais trabalhadora e empenhada que alguma vez tive o prazer de conhecer, só chegaria daqui a mais dois quartos de hora. Deixei-lhe uma sandes e um copo de leite numa bandeja, juntamente com um bilhete a dizer que tinha saído e voltaria mais tarde.
Uma rua e uma praceta é tudo o que separa a minha casa da única entrada da muralha. Uma casa escolhida a dedo para mim, mas era muito mais daquilo que eu tinha direito. Ninguém se passeava pelas ruas de calçada branca a estas horas da manhã. A primeira alma que encontrei foi na praceta, onde uma pessoa descansava junto da estátua de mármore do “Cavalheiro do Vapor”, um fosso de originalidade artística que assinalava a entrada na zona residencial dos lordes. Juro que por mais vezes que passasse por lá, tirando o número exagerado de rodas-dentadas que decoravam a indumentária do cavalheiro, qualquer outro pormenor não encontrava maneira de se registar na minha memória.
“Bons dias, Helena.”
A rapariga era o sonho de todos os romancistas, escondida numa realidade sem tempo para amar. Estava sentada num banco com uma cesta carregada de arranjos florais e uma muleta ao seu lado Mostrava formas desenhadas com carinho por de baixo dum longo vestido que, miraculosamente, ainda se mantinha branco. Ao ouvir a minha voz, levantou os seus olhos, duas aguarelas dum impossível verde rodeadas de sardas, na minha direcção.
“Bom dia, Doutor D.. Como está hoje?”
“Quantas vezes tenho de te dizer para me chamares Daniel?” Sorri-lhe de volta.
“Sempre mais uma. Vais à cidade?”
“Vou. Ouvi dizer que a filha do Arthur teve um acidente e ainda não foi vista por ninguém.”
“É verdade, mas receio bem que não tenha sido um acidente. Pobre Sarah…” O seu olhar disse-me tudo o que os lábios calaram.
“Então é melhor despachar-me. Helena, hoje vai estar um dia bem tórrido por isso não te esforces para além do que és capaz. Quero que passes pela minha casa para descansar, a Christine tratará do resto.”
“Não é preciso tanto.”
“É. Ordens do médico. E toma, vou levar esta. Até mais logo.”
“Deus te abençoe, Daniel. Tem cuidado.”
Tirei-lhe uma rosa branca do arranjo e deixei-lhe na mão três vezes o seu valor. De todas as floristas da cidade, mesmo aquelas que mantêm contactos com lojas holandesas, francesas e espanholas, não há quem consiga igualar as flores que a Helena consegue arranjar. Este seu talento é a única razão para a deixarem cruzar para este lado da muralha.
Antes de fazer essa mesma travessia vesti o meu uniforme: uma bata branca, na qual prendi a rosa, com a serpente de Asclepius bordada a vermelho nas costas e uma máscara da mesma cor na forma duma simpática criatura alada, reminiscente dos antigos Pestarzt. Os guardas mal me prestaram atenção ao passar por eles, tendo aprendido desde cedo a não questionar os caprichos da nobreza. De passo acelerado, rompi e desapareci na cortina de fundo.

O uniforme assegurava que qualquer um me reconhecesse sem qualquer dificuldade ao mesmo tempo que enviava o Daniel para as profundezas do anonimato, sem qualquer hipótese de fuga. Não tinha importância. Era do Rosenkreuz, a identidade que me ofereceram, que estas pessoas precisavam, não do jovem Daniel e da sua riqueza ganha sem esforço algum.
Ao caminho perfeito e alinhado impôs-se a calçada incompleta de pedras partidas e o ar limpo cedeu lugar à expiração e transpiração do progresso; quanto mais me afastava da muralha, mais em casa me sentia.
A padaria do senhor Arthur não ficava longe da zona fabril, feito que por si só não era nada complicado visto que a barreira entre fábrica e habitação desaparecia a cada dia que passava e poucas eram as casa que serviam só para alguém lá morar.
Atravessei as ruas apertadas e apinhadas de gente a passo rápido. Via carros a vapor romper por cortinas de fumo e desaparecer instantaneamente noutras mais à frente. O chiar dos pombos de ferro era constante assim como as buzinas dos dirigíveis de baixa altitude que abasteciam as lojas e fábricas de mercadorias. Cinzento, preto e castanho reinavam supremos na indumentária quer dos homens, das mulheres, dos novos e dos velhos e todos trajavam o vapor. O progresso descontrolado deixara, e continuava a deixar, marcas claras nas suas vítimas, o fumo e o vapor escureciam tudo e davam um aspeto doente e velho a todos os que se viam obrigados a viver nas cidades.
A padaria estava fechada… Devia estar a custar ao pobre coitado um braço e uma perna não ter o seu negócio aberto, mas sei que ele os ofereceria de bom grado se isso assegurasse a saúde da única família que lhe resta. Fiz-me anunciar, mas a única resposta veio na forma dum pranto. Os soluços e lágrimas conduziram-me escadas a cima até uma porta entreaberta.
O pai nem deu por mim. Estava curvado sobre a cabeceira da cama, fazendo o impossível para não se desmoronar como um castelo de cartas. Vi nos seus olhos as várias noites em claro que passara, quem sabe, sem abandonar o posto. Infelizmente, a filha ainda tinha pior aspeto: a sua tez era mais cinzenta do que pálida e notavam-se à distância os calafrios e suores que a envolviam. Estava praticamente ao colo da morte.
“Senhor Arthur diga-me o que aconteceu. Ela está a arder em febre.”
 O homem nem reagiu ao ver-me aproximar e começar a examinar a pequena Sarah.
“ARTHUR!”
Pareceu acordar do torpor e despejou um discurso ensopado em lágrimas.
“Ela estava a brincar. Junto ao porto. Um lorde estava a experimentar uma carroça a vapor. Ela estava só a brincar. Não estava a fazer mal a ninguém, nem estava perto da estrada. A Sarah… A minha filha… Ela foi atirada pelo chão como um boneco até cair ao rio!”
Tinha umas costelas partidas e outras equimoses. Se já é difícil respirar nesta cidade com bons pulmões…
“Os amigos trouxeram-na e contaram-me o que aconteceu. Tentámos chamar alguém. Mas nunca vieram. Ninguém. Ninguém quer saber de nós. Ninguém…”
“Eu quero. Isto é para si, tome três gotas de manhã e duas ao final do dia. Eu vou levar a pequena Sarah comigo, aqui não a consigo tratar. Fique descansado, ela voltará como nova. Prometo.”
Fixei na cara da pequena uma máscara de oxigénio para a ajudar a respirar, deitei-a nos meus braços e com todo o cuidado levei-a para fora do quarto.
O senhor Arthur levantou-se aos tremeliques e por momentos pareceu-me que o número de pacientes ia duplicar, mas a vontade de ferro de pai não permitiu que vacilasse. Da cama tirou uma velha boneca de trapos e aconchegou-a nos braços da filha.
“Amo-te.”

Tive de saltar para o meio da estrada, com a criança ao colo, e forçar um táxi a parar.
“Para a muralha. Sem pressas. Mas direto.”
O “rio” onde ela caiu é mais esgoto do que outra coisa. É para onde o excedente de vapor e restos da combustão das fábricas é despejado sem restrição. Um Styx borbulhante para lembrar todos aqueles que tiveram a infelicidade de nascer na capital o quão próximo estão dos horrores do submundo.
O pobre coitado que guiava a carroça quase sofreu um ataque quando lhe pedi para atravessar a muralha. Nada que o tilintar das moedas que tinha no bolso não curou. Partiu com uma velocidade prodigiosa assim que nos largou. Como eu o compreendo.
“Christine! Prepara o consultório, temos uma paciente e é urgente.”
Não obtive resposta.
“Christine! Estás aí? Responde!”
Nada.
“É uma menina, não deve ter mais de quinze anos. Se não a tratarmos…”
Cheguei ao meu andar e ao abrir a porta, encontrei a Christine, estacada ao chão, a tremer dos pés à cabeça enquanto segurava uma bandeja com um bule e uns bolos.
“Cão. Não devias fazer tanto alarido. Ninguém quer saber dos teus latidos.”
 Ao lado dela, relaxado na poltrona, um homem que trajava um uniforme cor de marfim, um cruzamento entre a imponência dos massivos fatos de mergulho e a graça e distinção dos tecidos mais caros, servia-se duma chávena de chá.
“Richard.”
“Cavaleiro Richard Woolf IV, cão.”
Presenteou-me com um sorriso afiado, por baixo da sua barba loira e cuidada, que só encontrava concorrência nos seus olhos aquilinos. Aquela criatura de uniforme real parecia ter uma descendência diferente do comum mortal, tudo nele fazia lembrar uma alcateia de punhais mais do que afiados.
Se não fosse um gemido da Sarah, a lutar pela vida nos meus braços, ter-me-ia deixado ficar ali a ser dilacerado por aquele olhar. Muni-me de todas as minhas forças.
“Christine. Agradeço-te teres entretido o nobre cavaleiro enquanto estive fora. Eu trato do resto. A pequena Sarah precisa de algo para lhe baixar a febre e de umas vacinas. Eu já vou ter contigo.”
Consegui ver o refolgo e a firmeza a voltarem à cara da minha ajudante assim que recebeu a criança dos meus braços e a levou para o consultório.
O cavaleiro observava-me divertido.
“É normal um rafeiro trazer lixo para casa. Não, não. Não tires a máscara, sinceramente, ela é uma grande melhoria.”
“Temos imensa pena. Como pode ver, cavaleiro, estou ocupado com assuntos sério. Esta visita cordial terá de ficar para outro dia.”
“Ainda bem que sabes falar. Dizes as coisas mais divertidas que alguma vez ouvi.”
“Então ouve bem que te vais fartar de rir com esta…”
Antes de poder acabar a frase, o cavaleiro galgou a distância que nos separava e com uma manopla na minha garganta, empurrou-me contra um armário.
“Ouve bem, cão. Eu sou um soldado do império. Alguém como tu nem devia estar na mesma cidade que eu. Acontece que a minha irmã está doente e a minha pobre mãezinha está desesperada e pediu-me para te vir buscar. Eu aceitei por amor à minha família. Com a chegada da rainha, é imperativo que a trates. Por isso pega nas tuas coisas e vamos.”
Estava a ponto de perder os sentidos quando ele aliviou a pressão.
“Aquela criança precisa mais de mim… Ela vem primeiro.”
“Cão! Não abuses da tua sorte. É verdade que já vieste ensinado, mas podemos treinar outros como tu.”
Arrastei-me até ao consultório, sentido cada punhalada que o seu olhar me cravava nas costas. Christine preparou tudo com a perícia dum mestre e esperava por mim para começar o tratamento. Aproximei-me da pequena Sarah. Só a mudança de ares já estava a ser uma grande ajuda, a menina parecia estar a abandonar o sono febril e a entrar num leve torpor.
“Vai ficar tudo bem.”
“Pois vai.”
A voz afiada nos meus ouvidos. O horror estampado na cara de Christine. O silvo do vapor pressurizado. O baque mórbido. A boneca de trapos pintada de vermelho.
“Vamos?”

Passei o resto do dia numa espécie de transe. Fui conduzido à residência do lorde Woolf III na companhia do cavaleiro do sorriso afiado. A pobre mãezinha apressou-se a conduzir-me até à sua filha, o pobre anjo cuja saúde a preocupava mais do que qualquer outra coisa. A criança era, tanto quanto podia ver, um perfeito exemplar duma rapariga saudável.
“Mas ela espirrou!” Disse-me a madame, a milímetros de se esvair em lágrimas. “Eu estava na varanda e ouvi-a! Juro que a ouvi espirrar.”
Como um dos autómatos que exibiram na última Exposição Mundial, procedi com um exame de rotina. Por mais fezes que lavasse as mãos, não havia maneira de lavar o sangue da pequena Sarah e de cada vez que me olhava no espelho parecia que envelhecia meses de enfiada. Via tudo o que tocava ficar manchado de escarlate.
Deixei a madame com um xarope para a sua filha. Ela quis pagar-me pelo serviço, mas eu só queria sair dali o mais depressa possível… Ainda antes de sair pela porta, senti um puxão na perna das calças e vi uma cabeça loira e um sorriso inocente. Uma criança manchada pelo sangue nas minhas mãos que me sorria um “Obrigado!”.
Senti que ia desmaiar.
De alguma maneira regressei a casa. Afundei-me na poltrona com os olhos cravados nas minhas mãos. Elas ainda pingavam rios de vermelho vivo. A Christine andava numa roda-viva a enviar mensagens pelos pombos de ferro e a cancelar todas as minhas consultas. Falou-me na sua voz mais doce e reconfortante, mas as suas palavras não conseguiram dissipar o silvo do disparo que reinava supremo nos meus ouvidos. Algures durante a tarde, foi a vez de Helena tentar a sua sorte. A sua voz melodiosa conseguiu devolver-me alguma vida, mas o melhor que consegui dizer foi um “de nada” quando ela me agradeceu pelo livro que lhe emprestara. Uma edição de biblioteca das «Vinte mil léguas submarinas». Abraçou-me antes de partir e eu senti-me tão frágil nos seus braços. Um abraço mais forte e dissolver-me-ia em nuvens de vapor e seria para sempre parte do miasma da necrópole.
Chegou a noite. O luar insinuava-se pela janela da sala. Estava a sentir um turbilhão de emoções e era incapaz de reagir ao que quer que fosse; o mundo poderia acabar aqui e agora e eu nem conseguiria arquear as sobrancelhas. Ouvi um enorme estrondo e por momentos pensei que o mundo tinha aceitado o meu desafio.
Um urso feito homem quase arrancou a porta das dobradiças. Estava prestes a erguer-me quando o homenzarrão me levantou numa assentada e me apertou num abraço capaz de moer os ossos.
“Está tudo bem rapaz. Está tudo bem.”
O Conde falava-me num tom ainda mais paternal do que era costume. A sua cabeça calva e a sua cara barbuda eram um misto de suor e lágrimas secas. O meu olhar cruzou-se com o do Conde e vi-me refletido naqueles orbes reluzentes de compaixão. Vi as emoções que ficaram perdidas naquele consultório nos olhos do Conde envolver a minha imagem refletida. Num ápice, fui submerso numa torrente de sentimentos e tudo o que consegui foi gritar.
“Isso rapaz, isso.”
Relaxou o abraço e pousou-me delicadamente na cadeira como se eu fosse um vaso de porcelana partido que acabara de colar. Ouvi os seus passos nas minhas costas e quando o voltei a ver trazia dois copos e uma garrafa na mão.
“Eu não bebo…”
“Hoje bebes, filho.”
O álcool alojou-se na minha garganta como um hóspede indesejado. O meu ar de repulsa era sinal de que o remédio estava a fazer efeito.
“Teria vindo mais cedo, mas só agora consegui tratar de tudo. Consegui apresentar a minha queixa à Câmara. Isto não vai ficar assim.”
“Não devia ter feito isso. O Conde já não é popular com os lordes e com mais esta queixa…”
“Disparates. Aqueles dejetos vestidos de pessoa precisam de ouvir uma verdade de vez em vez para os pôr no sítio. E para mim é mais do que um prazer poder ser essa voz.”
“É bom de mais para esta cidade.”
“Não. Infelizmente, não sou bom o suficiente. A chegada da rainha está para breve e há demasiadas pessoas inquietas na Câmara dos Lordes. Não vem aí nada de bom.”
“Acha que estão a tramar alguma?”
“Só estranhava se não estivessem.” Respondeu-me com um sorriso despido de diversão. “Não te preocupes, eu estarei lá. Peço que me desculpes Daniel, mas já tenho de sair.”
“A estas horas?”
O Conde assentiu com pesar.
“O senhor Arthur, alguém tem de lhe dar as notícias.”
“Eu faço-o.” Respondi imediatamente.
“Daniel. Não seria melhor…”
“Não. A pequena Sarah é a minha paciente e o médico é responsável por tudo o que acontece aos seus pacientes.” A minha voz transbordava com uma determinação que não sabia ter. “Eu preciso de fazer isto. É o mínimo que posso fazer e o senhor já fez mais do que alguém lhe poderia pedir. Já não é um homem novo, meu Conde. Precisa de descansar.”
“Então assim será, meu filho.” Assentiu exausto.
O Conde Teles e eu despedimo-nos com um forte abraço que disse tudo o que podia ter sido dito.
Dizer que o senhor Arthur ficara integralmente destroçado seria pintar um quadro demasiado otimista. Colei a culpa da morte da sua filha numa infeção que já se encontrava num estado demasiado avançado para tratar, certo de que a verdade seria capaz de matar o pobre homem. Deixámos a sua casa e caminhámos pelas ruas calcetadas, cobertas de smog e de trabalhadores dos turnos da noite. Em Londres para lá da muralha, a noite era apenas uma fase do dia com menos luz. Seguimos até à igreja de Maidentears. Uma catedral que também funcionava como hospital, um território neutro onde o progresso não entrava. As costas da colina, cujos ossos se distendiam de dia para dia, eram um vale de nomes e datas gravados em cruzes de pedra.
Pergunto-me quanto tempo faltaria para este vale engolir o resto da cidade. O Conde não olhou a meios para se certificar que a pequena Sarah era tratada como uma princesa. Ao ver o corpo da sua filha a repousar num sono angelical, o seu coração relaxou e pareceu-me até ver um sorriso resignado formar-se nos seus lábios. Um sorriso construído pela felicidade melancólica de saber que o seu anjo estava agora, e até ao fim dos tempos, fora do alcance de todos os males do mundo.
Quando voltei a casa já me sentia muito para lá de cansado, mas ainda não podia descansar. Armado com sabão, químicos, escovas e baldes, abri a porta do consultório onde perdera um bocado de mim. Passei horas a limpar o chão, as paredes, a mudar o colchão e a substituir os lençóis. Acabei por encontrar a bonce de trapos por de baixo da cama a fitar-me com os botões azuis na vez de olhos. Estava um bocado amarrotada e algumas das costuras tinham rebentado. Peguei nela como quem pega numa criança e tratei de a remendar. Quando acabei, o sol começava a dar ares da sua graça e, como se um feitiço tivesse sido lançado sobre mim, adormeci com a boneca nos braços.
Lá fora nascia um novo dia.
Um novo circo de horrores voava direito a Londres.

Gostava que tivesse dormido o sono dos justos, desprovido de qualquer sonho ou de qualquer carga emocional extra, uma cortina de preto balsâmico sobre a minha mente até à hora do despertar. Não tive essa sorte.
Por o tubo dum caleidoscópio, fui levado até a um passado recente. Recuei catorze anos até uma data onde não vivia como agora, até a dias felizes, antes de tudo mudar.
O rapazote de dez anos que eu era então, vivia com a mãe, Madeleine, e com o pai, Edmund, numa caravana que viaja pela Grã-Bretanha. Dois médicos, um para o corpo e outro para a mente, e o seu pequeno ajudante. Viajávamos pelo gosto de viajar e ajudávamos quem precisava porque era o que devia ser feito.
Eram dias cansativos. Trabalho não nos faltava, mas vontade também não. Os meus pais recusavam-se piamente a aceitar qualquer tipo de pagamento monetário, vivíamos da boa vontade das pessoas que ajudávamos. O meu pai era capaz de sobreviver durante meses só de ver os seus pacientes recuperar e a minha mãe seria capaz de viver durante anos só de ver o meu pai sorrir. Eu, com o sorriso confiante do meu pai e com a felicidade genuína da minha mãe seria capaz de viver para sempre.
Chegámos a Londres durante um dos Invernos mais rigorosos das últimas décadas. O frio congelou o Tamisa. Os habitantes das zonas pobres, desesperados por algum calor, usavam o vapor escoado pelo sem número de fábricas para se aquecerem. Estas modificações clandestinas faziam-lhes mais mal do que bem: muitas destas pessoas morriam queimadas ao desviar condutas que transportavam vapor sobreaquecido, outras acabavam por morrer sufocadas pelo próprio fumo que os protegia do frio e todos aqueles que se conseguiam aquecer tinham de pagar o preço de ver a sua saúde deteriorar a cada dia que passava.
Começámos a trabalhar mal pusemos os pés dentro da cidade. Lembro-me de correr todas as portas a distribuir panfletos que a minha mãe fizera, a anunciar que um consultório ambulante chegara a Londres e que nos disponhamos a aceitar quem quer que fosse que nos batesse à porta.
Montámos a caravana junto à torre de Londres, na altura em desuso por causa do rio congelado, e cedo se tornou o foco da cidade. Todos os dias distribuíamos cobertores e mantas e peles que acumuláramos nas nossas viagens. Todos os dias as mãos talentosas e firmes do meu pai remendavam corpos doentes. Todos os dias a voz doce e terna da minha mãe tecia remendos para corações partidos e cobertores para almas arrefecidas pela voraz cidade. E no meio de toda esta desolação, ainda consegui ter tempo para ser criança e brincar com os rapazes e raparigas da minha idade.
Cedo nos tornámos o centro de todas as atenções. Até mesmo daqueles que só olham para a cidade quando a tal são obrigados.
Sabia que nenhum lorde ou madame nas suas casas com aquecimento central ou lá no céu nos seus dirigíveis do tamanho de mansões, bem acima das nuvens escuras, podiam viver melhor do que eu. Eles podiam ser ricos, mas eu, na minha caravana de madeira, vivia com o amor de dois deuses.
Foram meses desesperados, mas nós mostrámo-nos mais fortes e foi com corações e almas reconfortados que vimos o rio descongelar e a Primavera romper o manto do Inverno. Foi então que tudo mudou. Numa noite calma e morna, enquanto preparávamos a carroça para abandonar Londres, um grupo de armaduras negras rodeou-nos. Carregaram sobre nós sem aviso com as suas espingardas altamente pressurizadas e com cuspidores de fogo. A minha mãe envolveu-me num abraço protetor e vi o meu pai colar-se ao chão em frente dela, os braços estendidos ao largo em sinal de proteção. Até o próprio Atlas sentiria inveja daquelas costas.
Os dois abateram-se sobre mim e mesmo já sem vida ainda me conseguiram esconder dos algozes. Mudo e petrificado, ouvi-os pegar em machados e abater a única casa que alguma vez tive e queimar os destroços da minha vida. Quando partiram, nem se dignaram a voltar a olhar para aquelas pobres almas que tinham chacinado, deixando-os ali para os cães. Ainda em estado de choque, fiz tudo o que me foi possível para recuperar a dignidade renegada aos meus pais que agora reinariam longe dum mundo que não os merecia.
A última coisa com que sonhei foi com a chegada do Conde Teles. Lembro-me dele me pegar ao colo. Lembro-me dos seus nobres olhos rasurados de lágrimas. Lembro-me de ser levado para um casarão e lembro-me de ter sido tratado com o maior dos cuidados.
Lembro-me de chorar. Chorar durante dias e noites sem fim. Se fosse possível teria chorado até me desfazer em lágrimas. Lembro-me da pena que senti, da dor que ainda sinto…
Acordei com os olhos vermelhos e inchados. A boneca de trapos nos meus braços estava polvilhada de lágrimas.

Faltavam três dias para a chegada da rainha Victoria. Londres estava mais louca do que era normal. Com todos os preparativos que a visita real requeria, ninguém se podia dar ao luxo de ficar de braços cruzados. Peregrinos entravam aos magotes pelos portões da cidade e famílias nobres de todo o Reino-Unido atracavam os seus dirigíveis nas torres de Newgate, Bishopsgate e todos os outros portais que cercavam a Londres dos privilegiados.
Como quem aplica um penso para curar um braço partido, a Câmara dos Lordes emitiu um decreto que proibia qualquer fábrica ou estabelecimento de produzir vapor, a fim de manter os céus puros e limpos para a visita real. Nenhum barão industrial negou a vontade dos lordes, mas também nenhum a cumpriu. As fábricas mantiveram as suas produções diárias inalteradas, apenas deixaram de libertar os fumos na atmosfera e arranjaram maneira de os escoar ou armazenar longe da vista.
A muralha que separava aqueles que viviam daqueles que sobreviviam parecia prestes a rebentar, tal era a aglomeração de egos inflados e de personalidades mesquinhas. Todos os lordes exibiam com orgulho os seus brasões em bandeiras penduradas nos telhados e em lonas nas fachadas das casas. Instalou-se entre todas as casas uma competição oculta para ver qual conseguiria ser a mais prestigiosa.
Era uma guerra e a vaidade e o orgulho eram armas e munições.
Os lordes levaram o seu séquito à perfeição mecânica sob pena de “repercussões gravíssimas” para quem falhasse; família ou não. Os melhores fatos, adereços, joias e perucas, usados só em alturas de festas da alta sociedade, viram-se agora a ser usados sem contenção. Nunca se sabe quando é que se pode cruzar com outra família durante um passeio ou quem pode aparecer em casa para chá e biscoitos.
Antes que sufocássemos com todo aquele ar perfumado e aqueles egos que roubam lugar até ao próprio oxigénio, a Christine e eu esvaziámos o consultório de todo o equipamento que precisávamos e carregámo-lo na caravana que o Conde mandara construir para mim. “Quando estiveres farto desta cidade, pega nela e vai para bem longe. Vive. Encontra a felicidade. Por mim e por todos os que tens ajudado.”.
Inspirado pelo sonho, conduzi-a até à Torre de Londres e montei o consultório no mesmo local onde a minha infância terminara. A Christine apercebeu-se do meu ar melancólico e, conhecendo o meu passado, fez de tudo para me impedir de ficar preso em reminiscências.
“O que é que eu faria sem ti?”
Ela sorria-me, matreira, antes de responder.
“Estarias a torturar pobres coitados com aquelas histórias que gostas de escrever em vez de lhes estar a aliviar as dores.”
“Tanta simpatia… Puseste uma colher de iodo a mais nesse medicamento.”
“A culpa é tua. Distraíste-me.”
“Peço imensa desculpa, senhora doutora. Deixa cá ver.”
“Que tal?”
“Quase perfeito. Se continuares assim, daqui a um par de anos posso pendurar a bata e dedicar-me totalmente à escrita e aos livros.”
“Pela saúde de todos nós, espero bem que não.”
“Estou a ver mais pessoas a chegarem. De volta ao trabalho. Desta vez, tu vais ser o médico e eu o ajudante.”
“Achas que estou preparada?”
“Estás, eu acredito em ti.”
Christine ofereceu-me um sorriso determinado que prometia que iria dar o seu melhor.
A tarde trouxe-nos uma aragem fresca e alguma calma. Encorajado pela Christine, saí para dar uma volta pela cidade. O ambiente festivo já se fazia notar e pareceu-me até que o semblante de todos ficara menos carregado. Ver os ânimos assim mais leves, quase me fazia desejar que tivéssemos uma visita real todas as semanas.
Andava por uma das ruas principais da cidade, ladeada de todo o tipo de lojas desde doçarias a drogarias, quando distingui uma figura apeada num caixote no meio da praça. O Conde Teles gritava ordens do seu posto a um batalhão de oficiais que o rodeavam. Transportavam caixotes e tábuas de madeira e nenhum deles parecia contente por estar a trabalhar com aquele calor. Mal me viu, saudou-me efusivamente.
“Daniel! Bons olhos te vejam rapaz!”
“Boa tarde, Conde. Não me diga que vai deixar a política para se dedicar à carpintaria.”
“Num piscar de olhos. Mas estou aqui sobre ordens. O conselho dos lordes, num claro momento de loucura, decidiu que a chegada da rainha iria ser celebrada com um banquete que se prolongará até ao final da visita e destacaram-me a mim para supervisionar os preparativos.”
O Conde leu a incredulidade na minha expressão e, descendo do seu posto, fez-me sinal para o seguir para longe dos ouvidos do batalhão de carpinteiros de aluguer.
“A verdade é que isto não me agrada nada. Eles estão a preparar alguma. Um dos homens que trabalha para mim na Câmara dos Lordes fez-me saber que eles estiveram a manhã toda reunidos a porta fechada.” O seu tom ficara grave e preocupado.
“Sem a sua presença.”
“Sim. Nunca nada de bom é decidido quando é necessário trancar as portas. Já mandei saber sobre a ata da reunião e ainda não tive resposta.”
“Mas? Eu conheço-o bem, está-me a esconder algo.”
O Conde fez uma pausa como se tivesse receio de contar o que sabia.
“Chegou-me uma mensagem. Lê-a tu.”
Passou-me um pedaço de papel muito mal tratado onde se podia ler numa caligrafia espessa:
«1666.»
“1666… Diz-lhe alguma coisa?”
“Sem o resto do contexto, não. Mas a pressa com que me fez chegar a mensagem já dá para escrever páginas.”
“Precisa de mais um par de olhos? Eu e a Christine podemos dar-lhe uma ajuda se precisar.”
“É melhor não levantar suspeitas, lobos ameaçados são mais perigosos do que os que se escondem. E por falar nisso, olha quem está ali.”
Segui o olhar do Conde até ao alvo. Um oficial que se distinguia pelo seu traje mais aprimorado do que os restantes, estava feito uma poça de suor a carregar tábuas e caixotes dum lado para o outro. Ostentava o brasão da sua família, um orgulhoso e feroz lobo de dentes serrados numa espada, sujo de fuligem e serradura às costas.
“Richard Woolf!” Exclamei bem espantado.
“Eu disse-te que ele não ficaria impune.” O Conde piscou-me o olho. “Vou voltar ao trabalho antes que eles decidam debandar. Promete-me que vais ter cuidado.”
“Esteja descansado.”
Nesse momento o Conde segurou-me pelos ombros e prendeu o seu olhar fraternal aos meus olhos.
“Promete-me.”
“Prometo. Vou ter cuidado. Em nome de todo o amor e apreço que tenho por si.”
O Conde assentiu e pousou os lábios na minha testa. Despedimo-nos, mas o nobre homem seguiu-me com olhar até eu já estar bem longe. Voltei-me uma última vez na direcção do Conde, o melhor pai que um órfão poderia ter, e pareceu-me que chorava.

Se restava algum bairro em Londres onde se podia ter alguma paz, era em Westminster. Uma explosão dum complexo industrial, nos primórdios da revolução industrial, deixou o bairro num aterro de sucata, pedra e madeira. O palácio, o Big Ben e a abadia pertenciam agora aos céus. Autênticas ilhas flutuantes que só os nobres podiam visitar. Na terra ficaram apenas as ossadas das estruturas. Sentara-me à borda do rio a deixar os meus pensamentos diluírem-se nas águas calmas.
Nunca vira o Conde tão sério…
“Daniel?”
Voltei-me para encarar a única pessoa no mundo capaz daquele doce tom de voz.
“Olá, Helena. Que fazes por aqui?”
“Andava à tua procura. Fui até à tua caravana mas a Christine disse-me que tinhas saído. Em vez de esperar quis tentar encontrar-te.”
O cansaço na sua voz era notário. Aquela rapariga frágil deve ter andado a torrar nas horas de maior sol enquanto me procurava. Ela viu a preocupação e o receio nos meus olhos que instintivamente se puseram a perscrutar o seu corpo à procura de uma qualquer enfermidade.
“Eu estou bem. Apenas te queria mostrar uma coisa.”
Senti-me aliviado.
“Que coisa?”
“A coisa mais importante do mundo.” Disse num sorriso. “Vens?”
Seguimos de braço dado em direcção às ruínas do palácio. Guiou-me cheia de confiança pelos destroços da antiga fundação. Pela maneira como ela se movia, mesma com a perna irremediavelmente estropiada, via-se que não era uma estranha aquele caminho. Detivemo-nos quando chegámos ao que em tempos fora a Victoria Tower. Helena bateu com a muleta no chão indicando-me uma pedra oca.
Agachei-me e só foi preciso um bocado de força para a deslocar. Surgiram umas escadas que seguiam até serem engolidas pela escuridão. Peguei-a ao colo e descemos os dois. A meio precisei de parar e deixar os olhos habituarem-se ao breu.
“Já estamos quase. Acredita, vai valer a pena.”
Descemos pelo túnel apertado durante mais uns minutos em direção dum ponto de luz esverdeada que não tardou a crescer e engolir-nos. Quando recuperei a visão, o meu espanto não podia ser maior.
“Bem-vindo ao Palácio da Esperança.”
Não sei o que é que me abismava mais. Se era a arquitetura impossível da gruta: as colunas, pilares e escadarias, tal e qual a sala do trono real; se a cidade que via estender-se pela caverna, preenchida com algumas caras que conhecia e outras que nunca vira. Mendigos, artesãos, trabalhadores fabris, todo o tipo de pessoas que poderia encontrar nas ruas estavam aqui nas suas casas improvisadas. Mas ao contrário dos habitantes destroçados da superfície, estas pessoas tinham um brilho especial nos olhos.
Esperança.
Pisava era relva como nos campos irlandeses. Flores duma beleza impossível e em números inacreditáveis estendiam-se até onde o olhar se perdia. E no meio deste jardim de sonho estava a flor mais bela do mundo. A frágil Helena, ajoelhada entre quatro colunas que formavam uma colossal nave, banhada na luz do sol. Fez-me sinal para me juntar a ela.
“As paredes estão cravadas de alexandrite que reflete a luz do sol e é daí que vem a luz.”
“É mágico. Pensar que um lugar assim existe por baixo de Londres.”
“As primeiras pessoas que descobriram este sítio usaram as ruínas do palácio para construir as suas casas. Foram passando o segredo deste lugar a quem confiavam. Aos poucos e poucos chegou cada vez mais gente e os diferentes mesteres que trouxeram consigo ajudaram a cidade a crescer.”
Ajudei-a a levantar e seguimos para longe do caminho e das casas até ao interior da caverna. Sentia um cheiro a mar misturado com a fragância das flores.
“Há muito que te queria trazer para viveres aqui connosco. Comigo. Mas quando via o bem e a falta que fazias na superfície, não me sentia capaz de esconder esse coração bondoso neste jardim. Desculpa-me.”
Colhi delicadamente as lágrimas que rolaram pelas suas faces sardentas.
“O meu lugar é onde quer que seja que precisem de mim. Tanto abaixo como acima da terra.”
Sorriu-me e, empoleirando-se na muleta, acariciou-me ao de leve os meus lábios com os seus. Seguimos num silêncio cúmplice, a sua mão sob a minha, até chegarmos à margem dum rio subterrâneo e a uma espécie de porto improvisado.
A água tinha a cor da noite, reflexos foragidos que encontravam a alexandrite da gruta brilhavam como pequenas estrelas acentuando ainda mais o efeito. Naquelas margens escuras, estava atracado um leviatã de ferro e madeira. Gravado no casco podia-se ler “Brave New World”. Era a primeira vez que punha os olhos naquele prodígio náutico e ao mesmo tempo, parecia que já o tinha visto algures.
“É-te familiar? Não vai ser capaz de submergir, mas se for preciso será capaz de nos tirar desta ilha.”
Ainda não conseguia acreditar que estava a ver um protótipo do Nautilus.
“Os nobres desprezam a nossa existência, mas também não nos deixam ir embora para não mancharmos o bom nome do império. Todos nós ajudámos a construi-lo. Começaram muito antes de eu cá chegar, mas finalmente está terminado. O livro que me emprestaste foi crucial para termos um motor funcional. ”
“Todas as vossas esperanças tornadas reais.”
Helena assentiu em silêncio.
“Assim é. Que achas?”
“É magnífico.”

Quando regressámos à superfície, fomos recebidos por um pôr-do-sol que vestia as cores do Outono. No céu afogueado surgiram silhuetas negras que faziam lembrar bandos de corvos; os dirigíveis de combate pertencentes à guarda avançada da rainha. Ver as suas sombras sobre a cidade encheu-me de calafrios.
Despedi-me da Helena com um beijo, naqueles delicados lábios, que ao mesmo tempo disse tudo e não disse o suficiente. Haverá algum dia tempo para nós?
A noite teimava em chegar, mas mesmo assim reinava um silêncio incaracterístico. A azáfama usual foi substituída pelos estrados de madeira e os barris de vinho para o grande banquete que se avizinhava. Talvez tivesse sido emitido algum recolher obrigatório enquanto estive no Palácio da Esperança. Talvez.
Cheguei à caravana sem qualquer incidente, mas com um coração inquieto. Mais do que uma vez lancei o olhar aos céus e só via aqueles pássaros de mau agoiro recortados na noite.
Fui dar com Christine sentada à porta da caravana a ler um livro à luz de um candeeiro a óleo.
“Como correu o resto da tarde?”
“Bem. Não apareceu quase ninguém, o Conde Teles passou por cá para um lanche rápido. Disse-me que te tinha encontrado na cidade. Pouco depois, uns agentes da polícia mandaram toda a gente recolher para as suas casas. Disseram que a guarda avançada iria fazer patrulhas pela cidade durante a noite e que ninguém devia ser apanhado fora de casa. Tenho um mau pressentimento.”
“Também eu. Vamos para dentro.”
Mesmo estando sem comer desde a hora do almoço, não sentia qualquer tipo de apetite e forcei-me a comer um pedaço de pão e uma caneca de leite, antes de me ir deitar no pequeno compartimento da caravana que servia de quarto e que partilhava com Christine.
Tentei fechar os olhos e esperar, em vão, pelo sono. O meu pensamento ora se ocupava a recordar as palavras do Conde e o seu ar atemorizado, ora descia da superfície para recordar a tarde de sonho na companhia da Helena. Só me comecei a sentir mais calmo quando me concentrei a observar a Christine, aquela nobre alma que me seguiria para qualquer lado. Dormia um sono leve e tinhas as mãos fechadas sobre o medalhão que se recusava a tirar mesmo se a própria morte o pedisse. “No medalhão? Uma fotografia do meu noivo e da minha família. A razão de eu ter vindo trabalhar para a cidade. São o meu tesouro.”.
Algures durante a noite, fui capaz de cerrar os olhos e adormecer.
Sonhei que um bando de corvos, mais sombrios que a própria noite, rompia o tecto da caravana e me envolviam num turbilhão de plumas e bicadas e piares que se espetavam nos ouvidos como alfinetes. Quando ao fim de muito esforço me consegui libertar das criaturas infernais, já não estava na caravana. Estava no meio de Londres e Londres estava a arder. Ouvia a madeira das casas partir e rachar, só que soava a gritos de dor. As casas destruídas pelo fogo sangravam e o sangue já começava a infiltrar-se pelas fendas da calçada. Via-o escorrer e infiltrar-se pela terra até chover sobre o Palácio da Esperança e sobre a Helena no seu vestido branco.
Queria correr. Não fui capaz. Sentia-me paralisado, como se algo me estivesse a morder o coração. Foi então que o vi. Um lobo. Um lobo do tamanho de um urso. Parou à minha frente e pôs-se a beber o sangue que escorria pelo chão como se fosse água. Quando saciou a sua sede, olhou para mim e pude ver que os seus olhos eram duas fendas negras que refletiam o infindável abismo. Quis fugir mas fui incapaz. O lobo uivou triunfante com toda a malícia que um animal desconhece, mas que um ser humano conhece demasiado bem e saltou sobre mim, rasgando-me com dentes afiados como adagas.
Acordei sobressaltado e sem saber bem se o que sonhei realmente acontecera ou não. Receoso de ter acordado a Christine, olhei para ver se ela ainda dormia. A sua cama estava vazia. Levantei-me e quando fui a chamar por ela, senti um intenso cheiro a queimado vindo lá de fora. Pensei que talvez uma das casas aqui ao pé tivesse pegado fogo e não perdi tempo em vestir a bata, trazer a mala e a colocar a máscara antes de sair para a rua. Vi a silhueta da Christine recortada na luz da entrada.
“Onde é o fogo?” Perguntei-lhe mesmo antes de sair porta fora.
“Londres.”
“O quê?”
O esclarecimento não foi necessário. Uma parede de chamas bruxuleantes erguia-se à nossa frente. Era como se alguém tivesse coberto a cidade com um lençol incandescente.
“1666.”
As chamas começavam a gritar com vozes humanas.
“O grande incêndio.”
Tudo à nossa frente ardia. Tudo menos as casas periféricas da muralha, esses bairros pareciam ser meritórios da descriminação das salamandras de fogo que lambiam a cidade. «A melhor maneira se livrar do lixo é queimando-o.», Quantas vezes li eu esta frase nos jornais? Nunca imaginei que estivessem a falar a sério. E de repente atingiu-me. O Conde Teles! Helena! Nós escapámos ao fogo por estarmos mesmo encostados ao rio, eles estavam mesmo no centro do inferno.
“Christine! Tenho de ir ver como está o Conde e a Helena. Quero que pegues na caravana e saias daqui o mais rápido possível! Segue o rio até chegares perto da muralha, eles conhecem-te lá, nada te acontecerá.”
“Mas…”
“Nada de mas. Pensa na tua família, tens de viver para poderes voltar para eles e nunca mais pores os pés nesta maldita cidade. Leva a caravana, eu vou ajudar quem conseguir. Não me tentes impedir. Vai.” Aproximei-me dela e beijei-lhe a testa. “Vai preparando o consultório, vamos ter muito que fazer.”
Não lhe dei tempo para responder. De máscara posta, lancei-me numa corrida por entre as ruas de fogo. As chamas, como um véu macabro, roubavam as formas aos prédios e às casas que se contorciam involutas num mar de dor.
Estranhei a ausência de pessoas na rua a tentarem fugir às chamas ou a salvar as suas casas e negócios. Pensei que talvez o fogo as tivesse apanhado de surpresa e que não tivessem sequer conseguido chegar à rua. Ao cruzar a praça principal, vi que a realidade era muito pior do que imaginara.
A guarda avançada mergulhara dos céus; desceram por âncoras lançadas dos dirigíveis e vieram armados. Envergavam armaduras que faziam lembrar equipamento de mergulho e escafandros ligados a tubos que subiam até aos céus, de certeza ligados a bombas de ar no porão dos dirigíveis, para os proteger do fumo, tal e qual mergulhadores. Uns traziam às costas uma espécie de bidões ligados a uma carabina modificada.
Estes tinham sido os primeiros a descer. Primeiro encheram as ruas e casas de vapor para sufocar as pessoas enquanto elas dormiam, depois só precisaram de usar a madeira e as pipas de vinho que foram trazidas para o “banquete” para deflagrar o incêndio. Estes soldados sem rosto só precisavam de alimentar as chamas e extinguir qualquer possível sobrevivente.
Montaram este inferno mesmo à nossa frente sem ninguém dar por nada.
Reparei num espaço aberto no centro da praça, quase propositado. Pareceu-me distinguir por entre o fumo uma forma imóvel. À cautela, avancei para ver melhor. Estava a menos de dez metros quando o horror da realidade arrojou-se com força contra o meu estômago.
À minha frente, colocado em exposição numa cruz de madeira, estava o corpo sem vida do meu segundo pai. Crivado por inúmeros punhais, os seus olhos foram mantidos propositadamente abertos e a sua cabeça erguida para poder ter uma visão privilegiada da descida do inferno à terra. Por baixo de si estava um charco de sangue. Demasiado sangue. Quem matou o bom Conde quis que ele sofresse, que sangrasse até não poder mais, a cada facada trazendo-o até um novo patamar de dor, até que o pobre diabo não aguentasse mais e só então receberia a estocada final.
Quem cometeu esta atrocidade não poderia ter deixado a sua identidade mais clara. A figura dum feroz lobo estava gravada no cabo de todos os punhais.
Quis gritar, quis chorar, quis morrer, quis jurar vingança, quis que o mundo ardesse, quis nunca ter nascido e quis isto tudo ao mesmo tempo. Mas assolado pela raiva e pela dor que só aqueles que já perderam tudo uma vez conhecem, mantive-me sereno. Tirei o corpo do Conde daquele expositor e coloquei-o no chão. Puxei os punhais um a um e fechei-lhe os olhos. Observei a dignidade que ele sempre possuíra em vida voltar a habitar o seu corpo.
Ao erguer-me, ouvi uma voz filtrada por um capacete de metal e senti o frio do aço duma baioneta nas minhas costas.
“Não te mexas nem mais um milímetro.”
Mesmo se quisesse, o medo tinha tomado conta de mim, estacando-me ao chão.
“Vou-te dar a escolher. Ou te espeto aqui ou caminhas em direção ao fogo. Qual vai ser?”
Sem pensar, dei dois passos em frente. Ouvi o riso metálico nas minhas costas. Estava já demasiado próximo do fogo quando ouvi o assobiar dum motor a vapor. Mal me voltei a tempo de ver a minha caravana colhê-lo e arremessá-lo como um soldado de chumbo contra a parede do outro lado da praça. Christine estava agarrada ao volante como uma mulher possessa.
“Christine? Eu disse para saíres daqui!”
“Sim, eu já estou habituada a não fazer caso das tuas parvoíces. Tive de apanhar uns pacientes.”
Reparei que a caravana estava apinhada de gentes aterrorizada, cobertas de fumo e cinza e com o olhar cravado no além a rezar por salvação. Felizmente ainda viviam.
“Ainda há lugar para mais um, sobe.”
“Eu não.” Com cuidado, peguei no corpo do Conde e coloquei-o na caravana. Christine observava-me, lutando para conter as lágrimas. “Haverá tempo para chorar e lamentar, agora é preciso sobreviver. Dá-lhe um bom sítio para descansar, ele merece isso e muito mais. Depois pega em ti e na tua família e foge deste país antes que ele nos mate a todos.”
“E tu que vais fazer?”
“Sou filho de médicos. Eu próprio sou um médico. Vou fazer o que sempre fiz. Salvar vidas.”
“Não morras.”
Enfrentei o seu olhar terno e ao mesmo tempo determinado com toda a minha sinceridade.
“Prometo.”

Aqueles soldados passam mais tempo no ar do que na terra e aquelas armaduras que lhes protegem do fogo roubam-lhes visibilidade. Lancei-me numa corrida desenfreada pela minha vida, pelos caminhos da cidade que conhecia tão bem e só parei quando cheguei aos destroços de Westminster. Senti que estava a ser observado a cada passo que dava, mas sempre que olhava por cima do ombro não via ninguém. Ninguém a não ser o implacável fogo, um mastim infernal a fechar as mandíbulas nos meus calcanhares.
A urgência quase me fez partir a pedra que ocultava a entrada do túnel que me levaria até ao Palácio da Esperança e faltou muito pouco para me partir todo enquanto galgava e pulava os degraus.  
Vi primeiro o brilho escarlate da alexandrite antes de sentir o perfume das flores queimadas.
Um punhado de soldados queimava tudo à sua volta enquanto os habitantes do Palácio gritavam e lutavam pelas suas vidas. Vi alguns corpos caídos por terra fendidos com golpes de sabre ou por balas, regando as flores com o seu sangue. As chamas conferiam à alexandrite uma tonalidade avermelhada e o efeito geral era como se as próprias paredes, tecto e chão estivessem em brasa. Tudo estava pintado com tons do inferno.
Na nave central, duas figuras imóveis distinguiam-se de todo o caos à sua volta.
“Cão! Vem cá. Olha que tenho aqui o teu brinquedo!”
Richard Woolf IV segurava Helena pelo pescoço enquanto me sorria divertido.
“Tens de ter mais cuidado quando sais à rua. Já conheci crianças mais difíceis de seguir.”
“Estás bem, Helena?”
Ela assentiu por de baixo do aperto daquela manopla cor de marfim que mordia o seu pescoço.
“NÃO ME IGNORES!”
O seu uivo ecoou por toda a gruta e fez-se ouvir mesmo por cima do caos e das chamas.
“Gostaste do presente que te deixei lá em cima? Olha que me esforcei por te agradar.”
Se fosse possível a um sabre sorrir, esse sorriso não conseguiria ser mais acutilante do que o sorriso maníaco com que ele me fitava. Vi as chamas dançarem nos seus olhos injetados de loucura.
Eu não ia entrar no seu jogo.
“Helena, não te preocupes. Vai correr tudo bem, vamos conseguir sair daqui. Prometo-te.”
“CÃO!”
Resultou.
Richard saltou ao meu encontro, cego pela raiva e de espingarda em punho pronto a varar-me como um animal selvagem. Na sua raiva esquecera-se completamente do refém que segurava.
O meu plano resultara. Agora mesmo que não sobrevivesse ao confronto, tinha dado à Helena uma hipótese de sobreviver.
O seu primeiro ataque foi uma estocada cega carregada de força bruta que me permitiu não só esquivar como também chutar a arma para fora da sua mão. O cavaleiro respondeu sacando do seu sabre, mas antes que ele o pudesse desembainhar por completo, saltei-lhe para cima e rebolamos dos dois pela gruta a baixo.
Eramos um autêntico frenesim de membros que lutavam desgovernados para ver quem ficava por cima. Quando a descida chegou ao fim, o cavaleiro conseguiu ficar por cima imobilizando-me por completo. Perdera o sabre durante a escaramuça, mas já se munira dum revólver que agora colava à minha testa.
Estava acabado. Em breve juntar-me-ia às flores e ao seu doce aroma consumido pelo fogo.
“Fizeste bem em manter-te vivo. Acabar com a tua miserável vida vai ser um prazer. Morre.”
BANG!
O tiro tirou o cavaleiro de cima de mim. Largou o revólver. Uma mancha de sangue formou-se no seu ombro. Vi-o olhar na direcção do disparo: Helena segurava a sua espingarda ainda com o cano a fumegar.
O grito de fúria que libertou foi desprovido de qualquer humanidade. Clamava por morte. Espumando da boca, lançou-se numa corrida animalesca na direcção de Helena, pronto para a desfazer com as próprias mãos. Usei todas as forças que me restavam para o intersetar. Um fio de metal brilhava nas minhas mãos. Chocámos. O impacto fê-lo cambalear, mas ainda conseguiu sacudir-me para o lado como um boneco.
A sua sede de sangue cegava-o. Nem dera pela sua própria morte. Seguia na direcção da Helena, alheio ao punhal, o mesmo que usara para matar o Conde, que eu lhe cravara no peito. Passou-lhe ao lado e continuou a sua marcha sinistra até desaparecer numa cortina de fogo.
Mal tratados mas ainda vivos, seguimos caminho até ao barco ancorado. As chamas ainda não o tinham alcançado. Os habitantes do Palácio da Esperança levaram a melhor aos invasores e conseguiram escapar até ao colossal “Brave New World” que estava pronto a zarpar.
Fomos ajudados a subir a bordo por vários pares de mãos. Partimos com um silvo metálico que fez estremecer toda a gruta.

Os primeiros raios da aurora banhavam o convés onde eu e Helena estávamos sentados, envoltos nos braços um do outro. Londres já era um farol encarnado no horizonte.
Deixámos aquele inferno bem para trás e navegávamos em direção a uma nova vida. Um lugar onde as flores possam crescer por baixo do céu e onde possamos viver sempre com um sorriso.
Nada mais.