domingo, 5 de dezembro de 2010

Ruído

Era uma vez um rapaz.
Era uma vez um rapaz que estava a passar por um mau bocado. Acabava de se encontrar numa cidade nova, para prosseguir com os seus estudos, longe de casa, longe da sua zona de conforto.
Um dia de cada vez, ia tentando adaptar-se à sua nova vida: criou uma rotina para quando estava sozinho, uma rotina que lhe permitisse ficar o maior número de horas ocupado com toda uma panóplia de tarefas que o distraíssem da solidão, quando acompanhado, andava com um grupo de amigos com os quais fosse fácil se relacionar, fácil de apanhar os maneirismos e peculiaridades assim como as preferências e os desprazeres.
“É só por enquanto.” Dizia para si.
Só iria durar até ter confiança, até ter criado raízes nesta terra que não lhe era nativa.
Estava mais ou menos certo. Eventualmente, chegou uma altura em que expôs uma ideia com o grupo, um ponto de vista, ou partilhou algo pessoal.
O resultado foi o mesmo que se obtém quando se atira uma pequena bola saltitona contra a parede. Acertou-lhe na testa e tudo. Esta recusa desanimou o pobre rapaz e o que ele fez a seguir, foi o que achou mais sensato fazer.
Calou-se.
Simples. Continuou com os seus amigos, apenas se tornou mais fechado, mais reservado. Eles não se pareciam importar, por isso estava tudo bem, não é?
No entanto, o rapaz sentia falta de alguma coisa. Algo para silenciar o silêncio que crescia dentro dele a cada dia que passava.

Acabou por encontrar o que desejava.
Um dia em que tinha ficado a estudar até tarde, ao sair da sala onde há já um bom bocado estava sozinho, reparou nuns headphones abandonados numa mesa. O rapaz estranhou, não tinha estado lá ninguém, no sítio onde eles repousavam.
Picado pela curiosidade, aproximou-se deles. Eram da variedade robusta, auriculares revestidos de cabedal que engoliam as orelhas por completo. Resolveu experimentá-los.
“UAU!”
Estavam a tocar uma das suas músicas favoritas. Foi amor à primeira vista. Decidiu logo ali que ia ficar com eles, quer tivessem dono quer não.
Havia algo de mágico neles. Nem o facto de passarem música sem estarem ligados a nenhum outro aparelho assustou o rapaz. Eram exactamente a cura que procurava.
Os headphones não se tornaram um simples acessório, eram mais uma parte da anatomia do rapaz, a peça que sempre faltou na sua vida.
Mal acordava, colocava-os. Começavam por tocar uma música motivadora, algo com bastante energia e positivismo para o fazer enfrentar o dia; a caminho das aulas, uma sonoplastia bombástica apagava todo o barulho de fundo do quotidiano e fazia-o caminhar “com gusto”. Durante as aulas, eles continuavam lá, a repousar à volta do seu pescoço, sibilando doces cantigas que só ele podia ouvir.
Mesmo quando se encontrava com pessoas com quem podia conversar, preferia-os deixar nos ouvidos.
“Não são headphones, nem sequer têm fio para os ligar ao que for! Só os ‘tou a usar por causa do frio.”
Era uma desculpa escanzelada, mas resultava. Podia simplesmente deixar-se estar a observar, a pôr nos lábios dos interlocutores as letras das suas músicas, podia pôr lá as palavras que quisesse, quem saberia? Todas as conversas ficavam interessantes, todos os elogios lhe eram unicamente direccionados, todas as pessoas de quem não gostava, auto-denegriam-se nas conversas. E se lhe perguntassem alguma coisa? Não prestava atenção, mas também não era preciso, as pessoas, por regra geral, telegrafam com os movimentos corporais: olhos, boca, inclinação da cabeça, etc. Qual a resposta que querem.

Como seria de esperar, tudo correu bem até ao dia em que correu mal.
Uma rapariga por quem tinha um sentimento especial, com quem trocava mensagens no telemóvel e no computador, a única pessoa que merecia o privilégio de falar com o rapaz sem ele ter os auriculares postos. Essa rapariga ligou-lhe, algo tinha acontecido e ela precisava dum amigo com quem desabafar.
O rapaz saiu de casa a correr ao encontro da sua amiga. Os headphones já eram tão uma parte fundamental de si, que nem deu por eles a descansar à volta do seu pescoço; hoje, a apertarem um pouco mais do que o normal.
Quando encontrou a rapariga, saudou-a com um cumprimento amável. Ou pelo menos era o que pensava que tinha feito, a maneira como ela o fitava sugeria algo diferente.
“O que foi que eu disse?” pensou para si.
Sentaram-se ambos, o rapaz concentrava todas as suas forças para a escutar, mas algo se passava. Não conseguia ouvir nada. Não era só a rapariga que estava muda, eram também as pessoas que passavam por eles, no parque onde estavam, os carros na estrada circundante, os pássaros que via pousados na árvore que lhes fazia sombra e tudo mais. Tudo era silêncio.
Assustado, o rapaz lançou as mãos em direcção aos ouvidos, o que sentiu, não foi cartilagem, foi o já familiar toque dos auriculares.
“Eu não os pus nas orelhas, como vieram aqui parar?”
A rapariga ficou a olhar para ele com um ar confuso.
“O quê, eu disse aquilo em voz alta?”
“Ela está a olhar para mim de maneira estranha?”
“O quê? Não, não estou a falar contigo.”
“Não, não é isso… Não os consigo tirar, a sério.”
“O quê?”
“Não, não, espera por favor!”
“Não vás!”
Tarde demais, a sua boa amiga, a única pessoa por quem se preocupava, acabara de lhe virar as costas, a sua cara um quadro impressionista de tristeza, raiva e pior que tudo, decepção.
O rapaz tentou correr atrás dela, mas os headphones vibraram na sua cabeça, tirando-lhe toda e qualquer noção de equilíbrio, e entupindo todos os seus nervos terminais com enjoos agoniantes.
Quando finalmente a náusea passou, conseguiu voltar a casa. Os auriculares ainda a privar o seu mundo de qualquer som.
“Se não queres ouvir as nossas cantigas, se preferes as palavras que te magoam tanto às nossas doces canções de sereia, se escolhes o tom falso e quebrado dos outros ao nosso timbre infalível, se optas pelo mundo cheio de estática em vez da bela e personalizada sinfonia da vida que nós com tanto carinho te damos, então não mereces ouvir mais nada. Nunca mais.”
Frente a um espelho, com a cara lavada em lágrimas, o rapaz empunhava uma afiada faca.
“Não és capaz, tu precisas de nós. Tu preferes as nossas cantigas, as tuas cantigas ao mundo real.”
A faca ao colidir com o plástico acabou por escorregar e cortou o rapaz na testa. Gotas vermelhas pintavam a sua visão.
“Só te estás a magoar a ti.”
O rapaz uivava com a dor.
“Não te tortures mais, nós aceitamos-te de volta. Deixa-nos cantar para ti.”
Desta vez o movimento foi recto e decisivo. Uma estocada directa com a ponta no meio do auricular.
O rapaz foi assolado por uma descarga eléctrica e um barulho semelhante a infinitos e colossais sinos de vidro que se partiam e reconstruíam apenas para serem destruídos outra vez a cada badalada. A faca ensanguentada estava caída sem vida no chão ladrilhado, ao lado do rapaz.
“Tenho a cabeça a zunir… Podia ter furado um tímpano… será que furei?” os auriculares destruídos estavam escassos centímetros à sua frente. “Não importa, já me livrei deles.”

Viu-se livre do que sobrava dos headphones o mais rápido possível, havia muito que fazer. Voltar a enfrentar o seu grupo de amigos, expor o que sentia, deixar de ter medo, fazer as pazes com a sua melhor amiga e até talvez contar-lhe tudo o que tinha ocorrido.
“Será que ela vai acreditar?”
Só saberá quando tentar. Mas sentia-se motivado, mas o porquê de se sentir assim não estava tão claro.
Havia algo, uma voz familiar dentro da sua cabeça, dentro do seu corpo, que lhe sussurrava que tudo estava bem, que tudo iria resultar em seu favor… que toda a gente lhe iria dizer exactamente o que ele queria ouvir.


 FIM 



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