Há algo que gosto muito de fazer. É uma experiência que não pode ser partilhada, ou melhor, experimentada com outras pessoas.
Os meus olhos, além de serem cansados e tristes, alem de quase sempre estarem orlados com olheiras pesadas e além de ninguém conseguir acertar na sua cor, para além disso tudo: também não são muito bons.
Sem os meus óculos vejo bastante mal. É desta premissa que nasce a minha experiência.
Assim que o manto escuro da noite começa a cobrir o céu, saio de casa e deixo os meus auxiliares de visão na cómoda.
Saio de casa com nenhum destino em mente: sair para dar uma volta, sair para jantar, sair para tomar café, enfim, o “para” não tem qualquer interesse e só cá está por causa da sintaxe. O verbo, esse sim, é que merece todo o protagonismo.
Tudo à minha volta é falso: edifícios, ruas, carros, pessoas e tudo o mais não passam dum borrão desfocado. Nada para lá do alcance do meu braço é real.
As luzes dos candeeiros – e nesta época, das luzes de Natal – não são os orbes luminosos que costumam ser, em vez, tornam-se flashes de brilho que ornam o ar da minha irrealidade.
As ruas movimentadas são as melhores.
Centenas de conversas cruzadas mesclam-se nos meus ouvidos, transmitindo-me apenas ruído.
Deixo-me ficar parado na multidão, a ver toda aquela inexistência a passar por mim. Como o rochedo no leito dum rio, oblívio à realidade que é a torrente que me tenta arrastar.
Bastou apenas não usar os óculos.
Bastou-me isso para fugir do mundo; esconder-me das pessoas com quem não quero estar, ludibriar os problemas e as preocupações que me seguiam.
Apenas tive de deixar uma “muleta” para trás para tornar o “Mundo-Mau-E-Ameaçador “ tão irreal como todos os sonhos que me acompanham quando durmo e quando estou acordado e que ainda não realizei.
No meu mundo só eu existo, não usar óculos é como eu deixo transparecer esse sentimento… Tudo que não consigo ouvir, tudo o que não me é nítido e tudo o que não está ao meu alcance – tudo o que não consigo agarrar e segurar com estas duas mãos – não faz parte do meu mundo. Não existe. Não é real. Por isso não há razão para me causarem qualquer problema ou aflição.
Talvez um dia perca de vez os meus óculos, mesmo estando eles colados ao meu grande nariz. Quando esse dia chegar, será o dia em que passarei realmente a ver.
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