quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Um crime




Existe uma criancinha que eu aprisionei numa sala escura longe do mundo.
Foi bastante fácil suceder, por uma única e despretensiosa razão: ninguém sabe ao certo quem esta criança é – nem mesmo eu. Não obstante, a criança cometeu um crime; estava-se a comportar mal e por isso foi castigada.
Esta criança não sabia o que queria. Foi considerada culpada de deixar o tempo passar por si, sem nunca decidir em concreto que caminho seguir no futuro. Como aquando da passagem de dezoito anos da sua vida ainda não havia assentado num rumo, eu intercedi: tranquei-a numa sala escura e guardei a chave comigo.
Ela nem sequer levantou a voz em sinal de protesto; acreditava ser culpada e ter recebido uma sentença merecida. Achava que algo estava errado, algo nela, algum defeito, que era estranho ser assim… todos os outros seus conhecidos sabiam bem o que queriam. Sabiam-no ao ponto de serem capazes de passar horas a discutir o assunto, a dissecar e conjecturar com precisão cirúrgica todas e quaisquer ramificações, implicações e resultados das opções dos seus futuros. Sempre com sorrisos e expectativas e visões a pontuar cada oração.

Ela era incapaz do fazer.
Ela deixou-se enclausurar.
Ela deixou-se ser levada para longe do resto do mundo.
Ela deixou de querer ser.
Eu sou o monstro que a mantém fachada.
Eu sou quem a eclipsou do mundo.
Eu sou um criminoso.
Eu.
Ela.
Ela e eu… Nós.
É um crime ao qual eu posso confessar e não haverá ninguém para me condenar. Ninguém para me julgar… a não ser eu. Neste crime e castigo, apenas nos temos um ao outro.
Às vezes aproximo-me da sala onde o tranquei, com cuidado para ela não saber que estou lá e deixo-me encostar à porta e escuto-o. Tento perceber o que faz.
Sou um criminoso cruel… sou mesmo.



De vez em vez, levo-lhe prendas. Dou-lhe livros para ler, jogos para jogar, dou-lhe papel e caneta para escrever… até lhe arranjei uma guitarra para aprender a tocar.
Mas dentro daquela sala escura ele não consegue ler as páginas dos livros nem ver as palavras que grava no caderno, não tem onde jogar os seus adorados jogos nem ninguém com quem possa aprender a tocar.
“Obrigado”
Agradece-me. Sempre com honestidade e inocência, as mesmas qualidades que ditaram o seu encarceramento.
Analiso o tom da sua voz jovial na esperança de encontrar alguma malícia, uma ponta de resignação, ultraje, até ódio seria bom. Algum sinal de represálias ou censura contra o seu captor.
Nunca encontro.
Cabe-me a mim carregar com essas acusações, censurar-me, odiar-me enquanto vou buscar a cruz e os pregos para me pôr bem alto para todos me conseguirem ver. Para sentirem pena de mim, para se aproximarem e principalmente me libertarem.
Posso censurar-me à vontade.
Posso castigar-me como bem entender.
Posso sofrer até mais não.
Ninguém me dirá nada.
Ninguém olhará para mim.
Ninguém entenderá ao certo o “porquê” do meu sofrimento.
Porque o meu crime é perfeito.
Porque é humano.
Porque eu sou o juiz, o réu e o carrasco.



Momentos de redenção.
Tenho-os, como toda a gente. Mas nem eles são assim tão indulgentes. Chegam a ser tão ou mais cruéis que a sentença, porque nos lembram do que nos é interdito. Mas por um bocado fazem-nos felizes.
Quando me sinto cansado, exaurido e destituído de toda e qualquer força seja para o que for, quando não consigo suportar mais os caprichos da vida, deixo que a chave, que o aprisiona naquela sala, se materialize na fechadura e deixo que ele abra a porta e caminhe até à outra sala.
Uma sala que é dele por direito, que decorou e redecorou com todos os seus gostos; paredes forradas com os seus sonhos, naquela sala onde eu não tenho coragem de entrar, onde eu não tenho permissão para existir e que tem estado vazia desde o início do seu julgamento.
Não deixo que ele me veja, quando caminhamos cada um para a sua sala: ele para a clara e eu para a escura.
Tiro a chave da fechadura e deixo a porta fechar. Do escuro, consigo ouvi-lo a divertir-se: vejo as páginas dos livros a serem viradas e as histórias a aparecerem na minha mente, sinto o riscar da caneta na folha e sinto-me invadido por uma criatividade julgada perdida à muito, oiço notas tortas enquanto ele tenta aprender a tocar e aqui, na escuridão desta sala, é como se micro-universos de sinfonias explodissem por toda a parte.
Aqui eu estou bem.



Aqui é onde o monstro criminoso devia estar e só sair para a luz de vez em quando – assim é como eu queria que fosse.
Aqui no escuro ninguém me vê chorar; eu não lamento estar preso. Eu lamento não estar fechado para sempre e por ele, aquela doce criança, estar no esquecimento que é o meu lugar por direito… não o dele.
Quando o deixo do ouvir, quando o sinto parar e cair num sono tranquilo e descansado, saio da sala escura. Ele está à porta a dormir o sono dos justos, as suas feições são um molde de felicidade imaculada. Carrego-o nos braços – pesa tanto como um sonho – para dentro da sala escura, pouso-o com cuidado e certifico-me que a porta fica trancada, ao sair.
Enxugo os últimos vestígios físicos do meu sofrimento e preparo-me para continuar a minha vida como o criminoso que sou. 






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