terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

"Escondidas"




Todos os anos, no mesmo dia, Sara acordava, sozinha na sua cama de casal, e um bilhetinho esperava, ansiosamente, que ela o descobrisse. Não tardava muito até ser encontrado dentro da gaveta da mesinha de cabeceira. Nele podia-se ler:
“Encontra-me!” escrito com uma letra jocosa.
Estava lançado o desafio!
Não demorou muito para que Sara saísse de casa, ainda com meia torrada numa mão e um bloco e uma caneta noutra.



Resolveu começar pelo lugar mais óbvio: o café do senhor Amílcar, ao pé da padaria.
Quando se começou a aproximar do seu destino, foi imediatamente assaltada pelo cheiro de massa de pão acabada de cozer.
Recordou-se de como, todas as segundas, acordavam bem cedinho – mesmo antes do sol nascer – e caminhavam pelas ruas desertas da vila em direcção à padaria. Ele iria buscar duas baguetes ainda a estalar e ela, com o seu sorriso enternecedor, convenceria o senhor Amílcar a servir-lhes dois chocolates quentes. Sentavam-se lado a lado, na esplanada, a ver o acordar da pequena vila.
Quando ela chegou, ele não estava lá.
“Pois claro, seria aborrecido se o jogo acabasse já.”
Na padaria, pediu uma baguete para levar e no café um chocolate quente. Escreveu no seu bloco e seguiu caminho.



A próxima paragem era um largo que ficava numa das perpendiculares da rua principal, ladeado por quatro grandes árvores e uma fonte repuxo em forma de sereia.
Lembrou-se da primeira vez que tinham marcado um encontro. Tinham passado por aquele mesmo largo onde, na altura, estava um saxofonista a tocar.
Pararam para o ouvir; ele deixou-se hipnotizar pela melodia de tal modo, que os seus olhos brilharam duma maneira que Sara nunca tinha visto em ninguém… No final da actuação, recorda-se de como ele, muito atrapalhado, lhe pedira umas moedas para dar ao músico. Ela, numa gargalhada, dera-as.
Desde então, todos os seus encontros começaram naquele largo ao som do saxofone.
Havia crianças a brincar perto da fonte, avós atentas que os vigiavam e o senhor, já velhinho, a tocar num saxofone que, em tempos, já deve ter sido novo.
Sentou-se num banco, deitou o bloco em cima dos joelhos e começou a desenhar.
Traço após traço, sempre embalada pelas notas melancólicas do saxofone e pelos risos alegres das crianças que brincavam.
Os traços carregados da música a contrastarem em perfeita harmonia com os riscos leves dos sorrisos dos mais novos.
Quando finalmente acabou, já era hora de almoço. Guardou as suas coisas, deixou umas moedas e um “obrigada” com o senhor que tocava e voltou a partir.



Achou que o sítio onde agora teria mais hipóteses do encontrar, seria naquele restaurante.
Só a memória desse dia bastava para a encher de boa disposição.
Conseguira convencê-lo a ir a um restaurante vegetariano. A ele! Um carnívoro de primeira apanha.
Lembra-se de se rir com o esforço que ele fizera para tentar gostar daqueles condimentos fortes e daqueles sabores “primorosos” como ele os chamara. Afirmara até que “não morreria se comesse esta comida todos os dias.”
“Mas sofrerias imenso! Toma” dissera ela, muito divertida, enquanto, recatadamente, lhe passara um embrulho laminado por de baixo da mesa. Era uma bifana que tinha preparado antes de sair de casa; ele praticamente chorara de alegria.
Também não estava lá.
Pediu o almoço. A meio, mordiscou algo laminado que trouxera consigo, pediu para levar o que tinha sobrado, pagou e, mais uma vez, voltou a partir.



Deteve-se por instantes no jardim de bancos gravados a azulejo onde costumavam passar tardes a ler os seus livros favoritos, a fazerem piqueniques na relva, a inventarem histórias mirabolantes para os artistas que lá iam fazer o seu número de homem estátua; onde costumavam ficar deitados na relva, a deixarem o olhar perder-se no azul do céu até adormecerem lado a lado.
 Depois de ter escrito no bloco e de ter desenhado, saiu do jardim.
O desafio estava a tornar-se cada vez mais complicado.



Sara começava a ficar preocupada, já faltava pouco para o dia acabar e se ela não o encontrasse, perderia o jogo.
“Talvez esteja ao pé daquela ponte.”
Uma ponte de pedra que cruzava o rio e conduzia as pessoas ao miradouro da vila… tinha sido lá.
Tinha sido lá que tiveram uma grande discussão…
“Foi sobre o quê, mesmo?”
Já não se lembrava. Apenas recordava que no calor da briga, tinha atirado com o medalhão que ele lhe oferecera quando fizeram um ano de namoro, para o rio e que depois marchara para casa com lágrimas nos olhos.
Acordara nesse dia para uma madrugada chuvosa, com um ruidoso bater na porta de casa.
Era ele, ensopado da cabeça aos pés. Botas nas mãos, casaco, agora mais feito de lama do que de pele, debaixo do braço, cabelo escorrido e pingando. Estava com um ar exausto e todo ele tremia… até metia dó.
Numa voz de pena aflita dissera-lhe a estender-lhe o medalhão:
“Ao menos fica com a nossa fotografia, por favor. Sempre disseste que era a tua preferida…”
Abraçara-o e beijara-o tanto com tanta força nessa noite… E durante o resto da semana em que ele ficou a morar no seu sofá para conseguir curar uma valente constipação.
Também não estava nem no mirante nem na ponte.
Desapontada, desceu até à margem do rio, apanhou a pedra mais brilhante que encontrou e seguiu o caminho de volta à vila.

*

No posto dos correios, Sara guardou tudo o que tinha recolhido durante o dia numa embalagem, assinou: “Para ti, com todo o meu amor. Sara.” E levou-a até um dos balcões.
“Olá Filipe. Fazes-me um favor? Podes-lhe entregar esta caixa? Eu não o consegui encontrar e vocês sempre foram grandes amigos…”
“Tu sabes muito bem onde o encontrar, Sara. É por isso que nunca o procuras lá…” Responde-lhe com um olhar cheio de pena ao aceitar a encomenda.
Sara respondeu-lhe com um olhar cansado e com um sorriso triste.
 Antes que as primeiras lágrimas tivessem oportunidade de rolar dos seus lindos olhos, já caminhava à luz do crepúsculo em direcção a casa.

*

“Tu não estás naquele lugar triste e só onde dizem que estás, pois não, meu amor?”
“Tu nunca saíste daqui, do meu lado… Nunca.”






1 comentário:

  1. Adorei o que li, ao ler este deixei-me levar e imaginar um mundo misterioso e romântico num jogo de escondidas.^^
    Puseste-me a pensar e a sonhar sobre muita coisa da vida que se passa.
    Acho muito bom , quero ver mais assim e conseguiste-me levar para uma parte boa e sonhar um pouco. (tens esse poder de nos teus textos me deixar sonhar ^^)

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