domingo, 6 de março de 2011

"O Príncipe Apaixonado"



Não quis casar com uma feiticeira que um dia lhe foi bater às portas do palácio.
“Lamento, bela dama. O seu pedido é deveras lisonjeador e fez-me sentir honrado mas, assim como eu prezo e respeito os vossos sentimentos, peço-vos, bela donzela, que também respeite os meus: o meu coração já tem dono.”
Sem dizer uma palavra, a feiticeira desfez-se num milhão de cinzas negras e desapareceu, deixando para trás um príncipe boquiaberto.
Nesse mesmo dia, um espesso nevoeiro negro tomou de assalto as terras do reino, cobrindo-as como uma redoma. O príncipe foi puxado para fora da redoma, donde viu o tempo a avançar descontroladamente para o seu reino; a cada segundo que passava, mais uma camada de ruína era pintado sobre a sua casa e as suas pessoas.
Quando o feitiço chegou ao fim, o príncipe estava na sala do trono com a grande janela aberta, dando-lhe uma vista privilegiada para a cidade que conhecia tão bem… Outrora povoada por alegria e um pulsar próprio, agora não mais que um quadro de desolação e um suspiro moribundo.
“Que farás agora, alteza?”
Um espectro demoníaco estava sentado no trono. Todo um negro aveludado com forma humana. Fitava o príncipe com dois grandes olhos vítreos e falava com um veneno acutilante, aguçado pelos seus dentes afiados.
“O meu reino…”
“A culpa é tua, alteza.” Não havia sombra de respeito no título com que se dirigia ao príncipe, apenas troça e sarcasmo. “Mas eu estou aqui para ajudar.”
Com o som de quem caminha sobre cacos de vidro, outrora reflexos de belos sonhos, achegou-se até estar ombro a ombro com o príncipe.
“Cedo-te o poder para curar o reino mas se o usares, terei de te levar à feiticeira e nunca mais poderás abandonar o seu lado. Que dizes, majestade?”
Mesmo sem ter ainda recuperado do choque dos acontecimentos, a resposta do príncipe foi imediata.
“Aceito.”



Fora do castelo fazia-se sentir um frio invernal… Não havia um céu para contemplar e fazer previsões sobre que estação seria. Tudo era cinzento e mortificado. Nada mais.
Um pouco por toda a parte, as pessoas acendiam fogueiras, alimentando-as com os poucos galhos mortos que encontravam aqui e ali… Um rapazito a tremer de frio caiu aos pés do príncipe.
Este apressou-se a cobri-lo com a sua capa, que se tornou em cinzas mal tocou no corpo do rapaz.
“Eles não sabem que estás aqui. Para eles morreste há séculos atrás, enquanto eles ficaram presos no tempo, sem nunca envelhecer, condenados a um sofrimento intolerável.”
O príncipe notou a satisfação na voz do demónio. Qualquer contra-argumento que pudesse ser empregue apenas iria deixá-lo mais orgulhoso.
“Mesmo que os ajudes, nunca saberão que foste tu. Nunca conhecerão o teu sofrimento nem a tua dor, este teu castigo será apenas…”
“Demónio! Quero que uses todas as pedras do meu castelo e todos os pedaços de madeira para erguer novas casas para estas pessoas. Assim o desejo!”
Não lhe agradou nada ser interrompido, mas esta era a natureza do contracto e como tal teria de obedecer.
Com um rugido que rasgou o próprio ar, o castelo caiu por terra e por todo o reino germinaram casas feitas de madeira resistente e pedra sólida. O príncipe sorria.
“Oh majestade sem castelo, ergueste casas para o teu povo mas são casas que se erguem numa terra sem vida. Elas poderão ficar de pé, mas em breve apenas morarão lá fantasmas.”
Era verdade. Caminhavam pelas ruas, abrindo pequenas fendas na terra que pisavam e levantando pó. Em seu redor, pessoas famintas tentavam cozinhar as ervas secas e espinhosas, as únicas que cresciam naquela terra de ninguém.
O príncipe caminhou até à nascente do rio que saciava há milénios a sede do seu reino. Da montanha donde dantes brotava um jacto possante, agora só havia uma poça de água suja.
“Triste. Não é majestade? Viver para sempre dependente dos caprichos da terra e das estações. Abandona o teu povo, volta para ela, dá-lhe todo o teu amor e quem sabe? Talvez ela tenha misericórdia…”
“É triste, sim. Mas ensinaram-me que até na nossa tristeza existe força. Demónio! Transforma todas as minhas lágrimas, toda a minha pena e pesar no corpo deste rio.”
O som de pedra a rachar mesclou-se com o grito de dor do príncipe que acabou por cair por terra. Uma terra que começava a acordar, ainda com um pulsar tímido mas firme.
“Não julgues que por te livrares das tuas lágrimas significa que vais deixar de sofrer. Oh não, antes pelo contrário. Sofrerás para sempre para as manteres a cair, apenas ninguém as verás e ninguém saberá a tua dor.”
“Tu saberás, demónio.”



As terras começaram a perder o pó e aquele lençol cinzento deu lugar a um fino tecido verde.
“Não sinto o calor do sol… Demónio! Leva todo o meu ouro e todas as minhas jóias e pedras preciosas e devolve o brilho ao dia. Assim o desejo!”
Uma a uma, todas as moedas de ouro e todas as jóias do reino voaram até ao céu e desfizeram-se em ínfimos fragmentos brilhantes que se fundiram com o céu e com a terra e trouxeram, de novo, luz ao dia.
Ao fim de séculos, ocultada pela ruína, a luz voltou a agraciar o reino do príncipe.
O demónio sorria deliciado, ao ver o príncipe a banhar-se na luz do sol que acabara de comprar e oferecer ao seu povo.
“Sabes, majestade, agora que esta terra voltou a ser fértil, sem um castelo e um príncipe para a defender, não há nada que impeça que seja saqueada e conquistada.”
“Existo eu, demónio.”
“E que farás, majestade?”
“Desejo que seja eu a receber a fúria dos meus inimigos e não o meu povo. Que seja espetada uma agulha no meu corpo por cada pessoa que me odeie e que queira conquistar as minhas terras. Assim o…”
O jovem príncipe não conseguiu ouvir o final da sua própria frase. A única coisa que os seus ouvidos captaram antes de desmaiar foi um riso diabólico e um zumbido agudo. Depois veio a dor. Depois tudo ficou negro.
“Acorda, majestade.”
A custo, o príncipe tentou-se levantar. Por todo o seu corpo estavam enfiadas pequenas agulhas afiadas como espadas; qualquer movimento, por mais insignificante que fosse, fazia com que elas se enterrassem mais no seu corpo, mergulhando a sua consciência num mundo de dor.
“Tente não desmaiar agora, majestade. Essas foram só dos seus inimigos. Eles apenas têm um ódio saudável por ti. Ainda faltam as pessoas que te odeiam verdadeiramente, as pessoas que julgam que foram abandonadas por ti, as pessoas por quem te estás a sacrificar para proteger… Ouve, aí vêm elas!”
Desta vez não eram só agulhas nem era um simples zumbido agudo.
Não.
Eram espadas que clamavam por sangue e a sua aproximação era um grito estridente dirigido ao coração do príncipe.
Nem lhe deram tempo para se levantar. A primeira cravou-se na barriga, levantando-o no ar. A segunda nas costas na direcção do coração. E mais outra e outra e outra…
Em poucos segundos o príncipe ficou encarcerado num sarcófago dilacerante.
O demónio contemplava-o com um sorriso.
“É só dizeres. Faço-te esquecer esta dor toda, devolvo tudo o que perdeste, envio-te para o pé da feiticeira e toda a tua dor desaparecerá.”
“E… o meu… reino?” A voz debilitada do príncipe esforçava para abandonar a cripta de espadas que o envolvia.
“Voltará à ruína.”
“Então… vamos… continuar.”
“Como desejar, majestade.”
Com o som dum estalar de dedos, todas as agulhas e espadas que mordiam o corpo do príncipe desapareceram. Mas apenas da vista. A cada passo, a cada movimento, ele ainda as sentia bem enterradas no seu corpo.
Aquela dor nunca o abandonaria.
A expressão do demónio já não parecia tão divertida, reparou o príncipe.



“Sabes, majestade. A terra pode estar viva, mas um reino não é um punhado de terra. São as pessoas, cada aldeão é o reino. E eles estão tão mortos como a terra estava. Os velhos não querem continuar agarrados à vida, os novos só pensam em envelhecer o quanto antes, os poetas não têm inspiração e as donzelas não têm quaisquer sonhos.”
Era verdade.
Embora a terra já tivesse renascido e o rio já tivesse voltado a correr, ninguém mostrava vontade de aproveitar esta dádiva. Para onde quer que se virasse, via olhares sem vidas, chamas apagadas.
“Esquece o teu amor pelo reino. É ele que te está a fazer sofrer assim. Abandona-o e a estas pessoas que só te querem mal. Ama apenas a feiticeira e ela fará com que a dor acabe.”
“Sabes, demónio. Já vivi tempos muito felizes e emoções muito fortes, graças ao meu reino e ao meu povo… Devo-lhes tanto, nem te consigo dizer quanto.
Faz com que a minha voz se torne no riso das crianças e que ele encha estas ruas vazias. Faz com as minhas recordações mais felizes sejam as musas dos artistas, oferece os meus sonhos às donzelas e faz com que as minhas memórias e o brilho dos meus olhos volte a atear o brilho da esperança nos olhos cansado.
Bem o disseste, demónio. O reino são todas as almas que lhe dão vida, assim como é o seu príncipe. Cumpre a minha vontade, assim o desejo.”
Um turbilhão negro envolveu o príncipe e depois soprou por todas as ruas e casas do seu reino.
Deixou-o caído no meio da rua. Os seus olhos, outrora brilhante e vivos, eram agora dois orbes cinzentos e baços. Parecia que se tinha coberto com um manto de apatia ao ser despido de todas as boas recordações e memórias agradáveis, deixando apenas os maus momentos e lembranças tristes a morar na “casca” em que o seu corpo se tornara.
No entanto, aos ouvidos do príncipe onde só ecoavam gritos de desespero chegou um som que os afogou a todos.
O tilintar duma corda de guitarra.
Depois um riso, lá muito ao fundo.
Um pássaro a cantar.
Uma enxada a ser cravada na terra.
O impossível aconteceu. As pessoas voltaram a ter esperança e o príncipe conseguiu reerguer-se e voltar a adornar a sua cara cansada com um sorriso.
O ar à volta do demónio crispava com ódio.
“Vamos.” Agarrou o príncipe pelo ombro e desapareceram.



Quando ressurgiram, estavam num quarto onde uma donzela estava sentada na cama, olhando pela janela com um olhar sem vida.
“Reconhece-la? Claro que sim… Como é que alguém se poderia esquecer da pessoa que ama?”
“Isabel…” Murmurou o príncipe.
“Podias tê-la tornado tua. Tu és o príncipe, ninguém poderia competir contigo. Tinhas o poder para a ter e castigar quem quer que fosse que a cobiçasse…. Mas não o fizeste.”
“Ela não me amava, não da mesma maneira que eu. O seu coração pertencia a outro. Ninguém, nem mesmo um príncipe, tem o poder de alterar o que o coração sente.”
“Responde-me. Amava-la mesmo?”
“Mais que tudo.” Respondeu sem hesitação.
O demónio sorriu com dentes afiados.
“É a tua oportunidade.”
Num piscar de olhos, o príncipe voltou a ser quem era. Um jovem de olhos claros, bonito, alegre e cheio de vida.
“É a tua última oportunidade. Esta rapariga perdeu o seu coração. Apenas tens de a levar contigo, torna-a na tua amada. Se o fizeres, deixarei o teu reino como está, devolverei tudo o que tu perdeste e farei com que a feiticeira nunca mais te consiga encontrar.
Apenas tens de a levar contigo, esta linda boneca… Ela amar-te-á para sempre e nunca te abandonará. Que dizes, majestade?”



O príncipe nada disse. Aproximou-se da rapariga, pegou-lhe, delicadamente, nas mãos e pressionou-as contra o seu peito.
“Minha princesa, lamento que te tenham feito sofrer assim… Sei que não podes aceitar o meu amor, por isso quero que aceites o meu coração. Já não me faz falta. O meu amor é teu e quero que o uses para seres feliz com quem o pretenderes, mesmo que essa pessoa não seja eu. Assim o desejo.”
Uma luz brilhante abandonou o peito do príncipe e foi de encontro a Isabel. A última coisa que o príncipe viu, antes de voltar ao mundo das sombras onde tinha estado, foi o brilho da paixão voltar ao olhar da sua amada.
Já não era a boneca que tinha visto mas sim a doce rapariga por quem se tinha apaixonado.
Neste mundo, o demónio esperava-o.
Não havia sinal algum do seu sorriso malvado e uma máscara de puro ódio e maldade fitava o príncipe, já não mais a figura bela e jovial de há momentos atrás mas o jovem castigado em que o demónio o tornara.
“Chegou a tua hora. Podias ter tudo o que o teu coração queria, mas escolheste o sofrimento e a dor. Tudo isso para fazeres com que pessoas que te odeiam, e que em breve te esqueceram para sempre, felizes.”
“Não me arrependo de nada.” Disse com um sorriso puro e sincero.
“Vais perder esse sorriso! Irás sofrer para sempre!” Gritou-lhe o demónio, lançando um braço negro com garras afiadas na sua direcção.
Apenas agarrou o ar.
Tentou outra vez e teve o mesmo resultado.
Outra vez. Outra vez. Outra vez. Outra vez. Outra vez. Outra vez….
Por mais que tentasse agarrar o príncipe, ele continuava a escapar às suas garras. Era como tentar agarrar o próprio vento.
Com um urro de frustração, o demónio desmaterializou-se; fendendo o chão e queimando com um fogo negro a terra à sua volta.
Então o príncipe sorriu, fechou os olhos e desapareceu na sombra do vento.







1 comentário:

  1. mal dei por mim e já estava no fim da história. isso é sempre bom sinal :). Continua, contador de histórias.
    (curioso teres reparado logo na ilustração da venda dos olhos porque vai ser mesmo esse pormenor a que vou dar importância numa curta que vou fazer)

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