segunda-feira, 18 de abril de 2011

Vieram as três por mim




Quando dei pela sua chegada, já era tarde demais.
A sinfonia do dia-a-dia havia cessado e com ela desapareceram também todas as pessoas que até então tinham ocupado o bar. Só lá estava eu…e as três.
 Três longos vestidos brancos que caminhavam, com vagar, por mesas abandonadas e cadeiras vazias; três punhais afiados que faziam o ar ciciar o meu nome, estavam cada vez mais próximos.
À minha frente, caminhando com passos pesados estava “uma recordação”. O vestido leve que envergava, não conseguia esconder as pesadas botas de ferro que trazia nem conseguia sufocar o tilintar das correntes que lhe prendiam o corpo.
Vinha na minha direcção, completamente silenciosa, só os seus olhos estavam a descoberto. Oh, como eles gritavam! Gritavam comigo num silêncio ensurdecedor, cantando a minha balada ao mundo em notas mudas e consumindo tudo o que alguma vez fui, numa cólera dum verde crepitante.
Aproximando-se pelas minhas costas, com passos leves e delicados, chega “um sonho”. Das três era a que caminhava mais lentamente, se não fosse pelo leve som de vidro a ser quebrado que acompanhava cada passo que dava, nem teria dado pela sua chegada.
Virei-me para a encarar, por uns instantes. Uma pesada venda branca cobria os seus olhos e grande parte do seu rosto e as suas orelhas estavam tapadas por duas conchas metálicas – mesmo se eu tivesse algo para lhe dizer, duvido que me conseguisse ouvir. Das suas feições apenas conseguia ver finos lábios numa tez pálida.
Esses dois pequenos traços eram um autêntico enigma. Como eram capazes de me sorrir tanto e ao mesmo tempo mostrar tanta tristeza?
Finalmente, para o meu lado, com passos confiantes, caminhava “o futuro”. Das três era a mais alta. As suas feições, qualquer vestígio de traço característico, estava tapado por uma nívea máscara de porcelana com pesados traços femininos. Longos cabelos alaranjados pendiam pelas suas costas.
No entanto, havia algo de diferente nesta terceira assassina… Era como se estivesse a forçar para existir, a mutar subtilmente a cada segundo que passava, a lutar para conseguir fazer parte deste mundo, para poder caminhar entre nós.



Em três lâminas estava eu reflectido. Três reflexos que me querem reclamar… Mas eu só tenho uma vida para dar.
As recordações podem ser dolorosas e esta agora tentava correr na minha direcção. Punhal em riste e com dois olhos incandescentes a gritar como nunca ouvi voz alguma fazer.
De cima duma pesa, tiro um prato e acerto-lhe na mão e faço o punhal cair pelo chão. Dando continuação ao movimento, agarro na lâmina e uso-a para desfazer as botas de ferro e quebrar os elos de ferro que a agarravam. Livre, ela desaparece no ar mesmo à minha frente e comigo fica a evanescência do brilho daquele olhar.

“Ninguém deve viver preso a uma recordação.”



Mal acabo de me levantar, sinto duas mãos a pousarem no meu peito por detrás e a puxarem-me para baixo. Deitado no chão com a cabeça sob o seu colo, “o sonho” olha-me com aquele sorriso contraditório, enquanto as suas delicadas mãos trazem a lâmina de encontro ao meu peito.
Fecho os olhos, para poder olhar melhor para mim mesmo.
“Nem todos os sonhos se tornam realidade.”
Abro os meus olhos e, com um ligeiro baque, sinto o meu corpo a ir de encontro ao chão.
Levanto-me e vou de encontro ao “futuro”. Ora parece que tem uma lâmina nas suas mãos, ora parece que a esconde atrás das costas, ora parece que estende os braços na minha direcção, pronta para me abraçar.
A cada segundo uma nova possibilidade.
Está agora parada à minha frente. Pronta para me aceitar, pronta para me atacar, pronta para me odiar, pronta para me amar. Pronta. Fitando-me por detrás daquela máscara implacável, daquelas expressões impossíveis de ler.
De mansinho, aproximo-mo dela, envolvendo-a nos meus braços.

“O futuro não está escrito em lado nenhum.”

Tiro-lhe a máscara e dela só restam infinitos grãos de areia que escorrem das minhas mãos para o chão. Um grão, uma possibilidade, um futuro, um caminho diferente.



Sinto a chegada dos acordes do mundo real… Não tardará em voltar e consigo trará mais recordações, mais sonhos e mais vias por onde seguir.
Agarro nas minhas coisas e calmamente sigo para onde quero; deixando sonhos impossíveis para trás, libertando-me da prisão das recordações enquanto procuro um novo caminho para percorrer.






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