domingo, 16 de janeiro de 2011

"A Pena do Corvo"


“A pena do corvo”
- Por Virgílio cunha


Em Portugal, a capital do crime é Lisboa, que tem um nível de criminalidade muito superior ao de qualquer outra cidade do país. É aqui que há mais assaltos, mais tráfico e consumo de drogas e  onde o número de homicídios é maior.

São uma constante, nesta Lisboa.
Não há dia que passe sem que eu as oiça, esteja onde estiver. Ouvem-se por cima das conversas das esplanadas do Príncipe Real, correm como loucas por todo o comprimento das docas, sobrepõe-se aos risos alegres das crianças que brincam nos parques e silenciam os jovens que passeiam e conversam nas sombras da Alameda.
Não passa um dia sem ter de ouvir sirenes… Que som mais amargurado. Os gritos lacerantes dos veículos de socorro, todos os dias, rompem o tráfego lisboeta, correndo a cidade duma ponta a outra, para socorrer uma pobre alma em sofrimento.
Os gritos das sereias propagam-se pelos espaços abertos, entram pelos becos ecoando de parede em parede; ouvem-se à entrada dos centros comerciais e nas saídas do metro. É como se a cidade inteira estivesse afligida – um grito de socorro, dirigido aos seus habitantes.
Sempre que oiço uma sirene, é chegada a hora de ir trabalhar.


“Mas, todos os dias, em média, houve 14 lisboetas que viram o seu carro roubado; 12 que sofreram assaltos nas suas casas; e 14 mulheres que tiveram a coragem de denunciar os maus tratos do seu cônjuge às autoridades.”


Há uma ordem natural para tudo, por isso não necessito de ir a correr – qual super-héroi dos quadradinhos – atrás das sirenes. Primeiro têm de chegar os socorristas, depois a polícia, se for caso para tanto, depois chega a comunicação social, só depois é que eu chego.
As sirenes são “como o canto da aurora”; um despertar para uma Lisboa que só eu vejo. Uma Lisboa feita de prédios que foram demolidos onde moram pessoas que já não estão vivas. É nesta Lisboa fantasma, nesta cidade que cresce com cada morte – sejam pessoas, árvores, animais, edifícios, tudo que tenha tido um propósito no mundo vivo – que eu faço o meu trabalho.
É-me muito fácil seguir as sirenes: se estiver perto, basta uma caminhada a pé, se estiver longe, tenho os transportes públicos para me movimentar e se estiver com pressa? Bem, aí tenho de ser criativo…
Tenho a aparência de um jovem nos seus vinte e poucos anos – é a que mais me convém, nesta época. Com o meu estilo gótico, é certo que ninguém me dá muita atenção, ninguém olha para mim por mais de cinco segundos, quando me meto num beco escondido.
Assim, ninguém repara como as minhas roupas negras encolhem comigo, nem como eu deixo de ter a aparência humana para passar a ter a de um dos principais símbolos da cidade.
Pelo ar, vejo a Lisboa dos mortos despertar por onde as sereias serpenteiam. Quando finalmente chego ao local onde elas se reúnem, só me resta esperar… Afinal, não são os vivos que precisam de mim e aos mortos o que não lhes falta é tempo.


Um objecto suspeito levou esta tarde à evacuação da estação de comboios do Rossio, em Lisboa, durante cerca de 40 minutos.
A brigada de Minas e Armadilhas foi chamada ao local, mas acabou por não detectar qualquer perigo. A situação acabou por ficar normalizada por volta das 19h30.”

                                                                                                

Quando chega a minha vez de actuar, repito a rotina secular. Aproximar-me do recém-chegado, trocar a plumagem negra pelo uniforme negro, negro como breu, da biqueira à pala metálica do chapéu, esperar que a pessoa aceite o envelope negro das minhas mãos enluvadas e esperar pelo pedido.
Muito sucintamente, sou um paquete, um ajudante dos mortos. Vou ao seu encontro, entrego a “carta de boas-vindas” e espero para saber se terei de fazer alguma entrega do mundo dos mortos para o mundo dos vivos.
Já me pediram de tudo: muitos não querem nada, outros querem apenas que lhes diga quem os matou, uns tantos perguntam-me o que é que a pessoa “x” está a fazer naquele momento, um já me perguntou o que seria o seu próximo almoço, outro até me chegou a perguntar as horas! Enfim, já me pediram de tudo.
Mas há uns pedidos que me marcam…

“Criança atropelada na zona da Alta de Lisboa. A menina saía da escola e foi colhida por um autocarro da Carris, acabando por falecer.”



Estávamos no frio mês de Dezembro, frente à estação do Rossio.
Parada no meio da rua, na sombra do majestoso edifício, estava uma menina que não devia ter mais de oito anos de idade. Olhava desesperadamente para a multidão que passava por ela, tentava tocar em quem quer que fosse mas, para os vivos, ela é apenas ar ou um calafrio, para os mais sensíveis.
“Olá, minha menina.”
Os seus olhos iluminaram-se tanto! Aqueles pequenos orbes azuis cintilaram com uma intensidade que eu nunca vira nos vivos.
“Vem, tenho algo importante para te dizer.”
Atravessámos – literalmente – pessoas e trânsito até ao rossio, para nos sentarmos à borda da fonte.
Conversámos então, ao som da água que não parava de brotar. No final da conversa, a menina já compreendia a sua situação actual.
Sabia que estava morta, sabia o que isso significava, sabia todas as implicações:
“Quer dizer que vou ter de esperar até estar com a minha mãe e o meu pai outra vez… “
Sabia que ia ter de esperar sozinha e era por isso mesmo que estava no Rossio.
“Quando deixei de estar com o pai e a mãe, estava com o Tufas e agora não sei dele.”
“O Tufas?”
“O meu cão de peluche. Estava aqui comigo, quando aquele carro... Quero esperar com ele, ele é o meu único amigo… ajudas-me a encontrá-lo?”
“Claro, Laura. Vamos procurá-lo.”
E assim passámos uma tarde toda, a passear entre o Chiado-sombrio onde era mais fácil andarmos sem ninguém nos incomodar, perguntando aos outros mortos se tinham visto o Tufas e o Chiado dos vivos quando eu precisava de perguntar a alguém se tinha sido deixado um cãozinho de peluche nos perdidos e achados.
Acabou por ser um polícia morto, eternamente vigilante, que nos acabou por dizer que todas as provas recolhidas já tinham sido entregues à família; seguimos os três até à casa de Laura.
“Obrigado senhor polícia!”
“De nada minha linda menina, sempre às ordens.”
Subimos até ao quinto andar do prédio. Atravessámos a porta e deixei que a Laura me mostrasse os cantos da casa. Estava completamente encantada, como se estivesse a mostrar a casa a um dos seus melhores amigos.
“E aqui é o quarto do meu irmão… oh!”
Um rapazinho dormia na sua cama. Tinha os cabelos mais loiros do que a irmã, tão loiros que contra o meu uniforme negro até pareciam brancos, como nuvens de algodão. Apertado contra o seu peito, estava um cãozinho de peluche que já teria visto melhores dias – abraçava-o com tanta força…
Laura aproximou-se do irmão mais novo, beijou-lhe a testa e disse:
“Toma bem conta dele, Tufas.”
Antes de sairmos, Laura quis ir ter com os seus pais.
Estavam os dois no grande sofá da sala, ao lado da árvore de natal, a dormir sentados nos braços um do outro; à sua frente, pousados em cima da mesa, descansavam vários álbuns de família. Várias fotos estavam polvilhadas de lágrimas.
O fantasma de Laura aninhou-se entre eles.
“Não chorem mais. Mãezinha. Paizinho. Está tudo bem, voltaremos a ser uma família feliz.”
Despediu-se com um beijo fantasma em cada um deles – um leve sorriso materializou-se nas suas caras adormecidas pela dor e o cansaço.
Laura puxou-me levemente pelo uniforme e perguntou-me:
“Porque é que estás a chorar?”

                                                                        
“Um jovem de 19 anos foi assassinado esta madrugada no Bairro Alto, em Lisboa. A vítima terá sido esfaqueada mortalmente por outro homem que foi detido de imediato, segundo adiantou fonte do comando de Lisboa da PSP.”


Em tempos, já fui um romântico. Com o decorrer dos anos, a chama vai-se apagando, vai minguando, mas nunca se chega a extinguir… dois “clientes” meus – um vivo e o outro morto – mostraram-me isso mesmo.
Encontrei-o a vaguear pelo Bairro Alto, um pobre espírito errante que por mais que tentasse, não conseguia descansar em paz. Acordava sem precisar de ouvir o canto das sereias e fazia as estreitas ruas do Bairro transbordar com a sua angústia.
“Não é justo.” Conseguiu dizer-me depois de se acalmar. “Eu e a Helena tínhamos tido uma grande discussão e estávamos a tentar resolver tudo… Eu já tinha arranjado a maneira perfeita e tudo! Escrevi-lhe uma carta onde despejei todo o meu coração. Ia ficar tudo bem… Tinha combinado estar com ela no dia seguinte, percebes? Ia ficar tudo bem, nós sabíamos que sim.”
Escutava-o com atenção, sem qualquer intenção de o antecipar.
“Eu tinha-lhe dito que ia a uma festa com amigos e ela não me respondeu. Mas a meio da noite recebi uma chamada. Quando olhei para o telemóvel, vi que era ela. Já tinha bebido um copo a mais que a conta e estava muito barulho e confusão. Decidi não atender. Era tarde, não é? Fazia sentido e tínhamos prometido que íamos estar juntos amanhã, logo lhe mandaria uma mensagem ou assim. Era só uma chamada… íamos ter anos, uma vida toda para nos falarmos… não é?”
A dor venceu-o por fim, vergou-o de tal modo que ficou ajoelhado na calçada. Não tinha lágrimas para verter, mas elas apenas seriam um pálido adereço face à bruta e crua dor que brotava do seu ser.
“Devia ter atendido, devia ter atendido, devia ter atendido…DEVIA TER ATENDIDO!”
Ele queria dizer mais, mas para mim estava tudo dito.
“Diz-me onde está a carta e onde é que ela mora, eu entrego-a.”
Podia-lhe ter dito que a vida é demasiado curta para arrependimentos, para duvidarmos, para desperdiçar as pequenas oportunidades mas ele soube-o como ninguém; quando viu o seu reflexo surgir no gume da faca.

Ir buscar a carta foi a parte fácil: voar pelos céus desde o Bairro até à Rovisco Pais, aterrar na varanda, voltar a ter aparência humana e entrar – sem ser visto – para dentro do quarto.
Como seria de esperar, a família ainda não se tinha atrevido a entrar neste santuário. Estava perfeitamente desarrumado, à espera que um milagre marchasse o filho querido pela porta da frente; então os pais poderiam zangar-se com ele – com um sorriso de orelha a orelha, os olhos a transbordar de lágrimas e a voz de amor – e mandá-lo arrumar o quarto. Tudo estaria bem…
“Estou a ficar velho…”
Recolho a carta, estava na mesa-de-cabeceira – como ele disse que estaria. Guardo-a no meu uniforme, e levanto voo dali para fora.
Agora vinha a parte difícil…
A Helena morava num prédio alto na Fontes Pereira de Melo. Ainda não tinha chegado a casa quando pousei na sua varanda. Rapidamente, atravesso a janela e deixo a carta em cima da secretária, acompanhada por uma das minhas penas pretas. Volto a adoptar a minha forma animalesca e espero.
Enquanto espero que chegue, oiço, inúmeras vezes, sirenes a atravessar a longa avenida… terão de esperar.
Helena chega e dá logo com a pena e com a carta. A curiosidade fará com que abra aquele envelope sem assinatura. Só a sorte fará com que acredite em quem a enviou.
Ela começa a lê-la – não a consigo ouvir aqui de fora. Olhou para mim por um instante, sentou-se agora na cama. A maquilhagem está a começar a escorrer, como um negro rio, pelos seus olhos a baixo, o seu corpo treme com leves espasmos.
“Ela amava-o muito. Era claro.”
Entrega feita, podia ir embora. Já me encontrava longe da casa, quando o vento traz algo aos meus ouvidos. Uma canção. Uma canção num pranto:
“Papagaio Loiro de bico dourado;
Leva-me esta carta ao meu namorado
Ele não é padre, nem homem casado
É rapaz solteiro, Lindo como um cravo.
Papagaio loiro de bico dourado,
Leva-me esta carta paro o outro lado.”

Helena cantava, esforçando por se fazer ouvir por cima das badaladas típicas da hora de ponta. Segurava a carta contra si, numa mão, na outra segurava a minha pena.
“Toma. Leva-lhe isto. Entrega-o ao meu amor, onde quer que ele esteja.”
Levanto voo daquela casa pela segunda vez, levando o colar de prata em forma de coração, que Helena arrancara do pescoço, preso no meu bico. Ainda oiço uma voz, muito ténue, trazida pelo vento.
“Pedro… Amo-te… Sempre…”
E continuo cidade fora, para fazer a última entrega do dia.


“ «Profeta», disse eu, «profeta — ou demónio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!»
            Disse o corvo, «Nunca mais».
Não são só os vivos que cuidam dos seus.
Fui alertado para uma rapariga que dia, após dia, após dia, sempre, sem nunca descansar, não parava de assombrar um vivo.
Berrava-lhe obscenidades aos ouvidos, tentava estrangulá-lo com as suas mãos fantasmagóricas, tentava empurrá-lo para a linha do metro, tentava avisar outras pessoas que aquele senhor de meia-idade era na verdade um assassino. Tentava tudo, mas não conseguia nada.
“Só os vivos é que podem julgar os vivos.” Disse-lhe.
“Não é justo.” O seu olhar seria capaz de matar.
“Não é.” Foi tudo o que lhe consegui responder.
“E tu? Não podes fazer nada?”
“Não estou vivo, mas também não estou morto… Sou um inútil que, mesmo que queira, não pode interferir, que não pode corrigir o errado. Não me cabe a mim passar sentenças. Apenas posso ajudar.”
“Então ajuda-me a esquecê-lo. Vamos dar uma volta, por favor. Quero que me fales de ti.”
Então seguimos os dois, pela Lisboa dos vivos, descendo do Marquês e subindo até ao mirador de Sta. Catarina.
Ela chamava-se Elisa, tinha a minha idade actual quando foi morta, amava poesia e desejava ser escritora até que um dia, um assassino violador apagou esses sonhos.
Chegámos ao mirador, a cidade estendia-se sobre o nosso olhar.
 Os seus cabelos, da cor do meu uniforme, voavam gentilmente com uma brisa que só nós ouvíamos ali do alto: o lamento da cidade.
“Por aquilo que me contas, a tua vida ainda é mais solitária que a minha.”
“É complicado, não pertencer a nenhuma das duas cidades. Mas há dias, há dias em que sinto que fiz a diferença. São esses dias que me fazem continuar.”
“Não tens sonhos?”
“Prefiro não os ter. É mais fácil assim…”
Deixámo-nos estar, simplesmente a contemplar a urbe que, languidamente, veste-se para a noite que não tardaria a chegar.
“Imagina só: cada candeeiro que se acende no crepúsculo, uma oração. Uma prece duma alma perdida, como eu… como tu. E não param de aparecer, em breve vão ofuscar toda a cidade, vês quantas elas são?”
“Vejo.”
“Tantas almas… tantas histórias… Senhor mensageiro?”
“Sim, Elisa?”
“Já sei o que quero pedir.”
“O que é?”
“Um acordo.”
“Um acordo?”
“Isso mesmo, eu esqueço o estupor que me matou se tu acolheres o meu sonho.”
“O quê?”
“As luzes! Vê, lá em baixo.”
Do alto do miradouro, via-se um mar de luzes âmbar: nas ruas, nas vielas, nas avenidas, nos prédios e nas casas. Via-mos Lisboa coberta de luz.
“Quero que contes a minha história, a história deles ali em baixo, a tua história. Não interessa onde, ou se alguém a lerá ou não! Não é importante. O que importa é que seja contada.”
“Nunca ninguém me tinha pedido algo assim…”
“Aceitas o meu pedido?” O renascer do seu sonho tinha-lhe dado um novo brilho, já não era a mesma rapariga amargurada que encontrara horas antes.
Como poderia recusar?
“Aceito, Elisa. Continuarei o teu sonho.”
Ela abraça-me com força, esperançosamente. Mesmo sendo ela um fantasma, sinto um forte impacto, sinto o calor da vida, o íntimo do sonho, a essência da vida.
O som de uma ambulância nas ruas abaixo de nós, leva consigo o tempo para as nossas despedidas.
“Vai lá, corvo contador de histórias. Vemo-nos por aí.” E despede-se com um sorriso.

Tantas sirenes, tantas vidas, tantas mortes, tantas histórias e tudo só nesta minha cidade.
Tantas histórias…
“Por onde começar?”




- fim

5 comentários:

  1. Pequena história que usei para participar no concurso "Lisboa à Letra".
    Era-nos pedido para contarmos uma história que tivesse a cidade de Lisboa como pano de fundo.
    A minha morada original é mais para o sul do país; por isso limitei-me a pegar num facto que constato todos os dias (o barulho das sirenes) e pôr-me a imaginar e deixar Lisboa infiltrar-se na história onde fosse necessário.

    Se por ventura alguém ler, agradeço opiniões.

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  2. Desculpa todo o tempo que demorei a responder-te, não tinha visto o comentário porque isto não avisa e passo sempre por aqui à pressa, é publicar e bye bye, e hoje decidi dedicar um pouco de tempo a explorar e encontrei o teu simpático comentário (:
    é, tivemos pontarias semelhantes na escolha do nome :b , e já agora, gostei deste post

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  3. Obrigado =D
    Ainda bem que gostastes (é que sinceramente, escrever algo assim tão grande e depois as pessoas não gostarem, seria muito mau da minha parte.)

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  4. Good post.
    http://www.youtube.com/watch?v=W2I5jpEIa3st

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  5. Obrigado ^^
    Agora lembraste-me que ainda não vi o Vampire Hunter D.
    Obrigado pela música.

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